sábado, 27 de janeiro de 2024

grito

 É verdadeiramente os sinais dos tempos. Aqueles mesmos, descritos há milénios em vetustos livros que ganham pó na memória do homem. Nessas escrituras que alguns consideram balelas e outros o mais íntimo sacrossanto, eu indeciso, retiro conclusões directas do valor nato das suas frases transcritas. Conclusões apoiadas na minha bússola ética e moral, imperfeita e parcial que apenas conhece esta realidade, esta vivência.

A lei do mais forte impera impune. A natureza do homem não foge à do irracional, e mesmo se utilize mais protocolos, sinapses e mordomias estamos no mesmo patamar. O da violência animal crua e sem pudor. Mas a nossa capacidade inventiva e curiosa conseguiu criar novos instrumentos de tortura e formas de escamotear a condição humana. Escravos de escravos de escravos.

 Da nossa necessidade de nos conectarmos com o mundo e outros como nós, nasce o seu oposto. A renúncia ao contacto, o isolamento dentro de si. Assim se cortam laços e se quebram comunidades. Estamos condenados às eternas dualidades creio. 

Onde um dia encontrámos forças no volume dos nossos números, hoje encontramos dissidência. Em singular somos geniais em plural somos deploráveis. E nós adeptos de uma evolução exponencial corremos para uma crise existencial. Tão expeditos a aprender, tão cegos a ver os erros de ontem. Novamente dúbio e duplamente ridículo.

Lá vem o "profeta do apocalipse", esse pessimista de gema que se farta de gritar lobo por essas aldeias fora, o inconveniente do costume ou até o pessimista nato. Se assim é a única forma que me faço ouvir então espero que a minha voz nunca se cale pois já o disse e repito: tenho fé no homem mas não na humanidade. 

sábado, 9 de setembro de 2023

bardo

 passo pelos palcos e vejo e plateias vazias e indiferentes. procuro então árduamente o meu lugar. forço-o e luto pelo protocolo e a suas responsabilidades. entrego-me à cena e irrompem-se frases transitórias, servilismos e futilidades. ouvem-se contos de grandes feitos e histórias para adormecer. todos eles para gáudio da audiencia do momento. sejamos honestos, como um palhaço servil e risonho. tal e qual aqueles que viamos em criança no circo. os mesmos que capturavam a nossa atenção e nos roubavam as gargalhadas com a suas histórias de tragicomédia e arcos redentores de finais felizes e conformidades.

enfadonhas estas gentes que me observam e mais exasperantes as que me interpelam. são vozes sem contexto, corpos ocos e mentes desocupadas. pouco agitam o meu lado curioso e menos ainda a minha faceta epicurista. são clones de protótipos, lapidados por mãos preguiçosas e ferramentas rombas. turba enfadonha, uma multidão de rotinas inócuas.

para quê tantas reverências e salamaleques mal enjeitados quando contados todos estes momentos irrelevantes não passam de um simples cortejo de minutos desperdiçados, uma pequena lembrança de rodapé nos livros da existência.

 em comparação observo em mim os meus feitos e defeitos. o meu volúvel conjunto de ideias e a prática dos meus princípios servem-me de barreira. crio então os artífices que me servem de espantalhos, como uma sombras humanas que afugentam e amedrontam. e finalmente entendi porque é que já nao sou de ninguém há muito tempo. talvez desde sempre. e ja não sei se quero ser alguém de alguém. 

domingo, 3 de outubro de 2021

enquanto dormem(s)

 dentre os tédios nocturnos e as horas vagas, permitem-se outros olhares no silêncio da minha fé. são idílicos ou provençais os verbos que escondo em mim enquanto cedo às rotinas de sentinela e são cripticos os meus julgamentos renegados pelo absurdo. que pene a alma pela sua fraqueza. 

envergonhado admito as ilusões de outros destinos para um amanhã que demora a espairecer. coloca-se a esperança de um nascer do sol que de novo apenas regista mais ciclo. aquele evento de calendário que repete um número até à eternidade. 

se é verdade que de noite sonho então o dia é carregado de insónia. 

domingo, 1 de agosto de 2021

Abrupto

 E vem sem esperar. Sem aviso nem perdão, pela força da nossa natureza, a tal que negamos constantemente. É um assoberbar de raciocínios amontoados que se libertam, um vulcão adormecido de eras vetustas que ruidosamente volta à vida. 

Um nefilim enraivecido que dilacera as hostes inimigas, uma horda de mil vozes, uma torrente de dor , um jorro de sangue arterial. 

Mas desta vez embora inusitado não é desconhecido. Velho amigo de outrora, hoje é um inimigo da paciência, o algoz do meu martirio. 

E aturdido vocifero o desespero de quem não sabe como acalmar a fúria das vagas como aquela lágrima que nunca se soube suprimir. 

terça-feira, 29 de junho de 2021

Ecos


Um cânone serve como pedaço de exaltação ou como a punição do sofredor. Um ruído que nos deixa mudos é o mesmo que nos preenche a alma. É composto de tudo o que não é tangivel mas tambem se acompanha da ideia ou imagem, junta-se ao fisico pelo bálsamo do idealista, a âncora do existencial, a exultação do crente. Irmanados na vertente humana.

Um transe hipnótico que perdura desde a criação da linguagem, a música da musa deixa enfeitiçado o mais comum pela beleza da sua pureza. Sem necessidade de razão desafia a lógica do raciocinio e expande a fronteira do mundo conhecido. 

Os ecos do primordial são o verdadeiro temor do trovão. E todo ele na sua magnitude é um verbo sem palavra, uma emoção banhada no abstracto. O vibrar da semente da existencia é o protótipo da linguagem perfeita.


quinta-feira, 20 de maio de 2021

Verbalizar

 

Pelos caminhos tortuosos da fala libertam-se desejos de concordância. Pela fala e todo o seu acumulado de sons ancianos exprime-se imagem e ideia, procura-se o interpretar das emoções, afia-se o silex da lógica. Pelo som do meu choro, alimento o medo no homem mas pelo som do meu riso convido-nos à cumplicidade propria do sentimento ebriático e fraternal de quem provém da mesma génese.

Pela voz comanda-se acções e contracções, promove-se o estandarte e a cor. Uma voz pelo destino de tantos, uma ideia presa à linguagem que a molda e transforma. O metal macio com que se forma alianças e se destrói impérios. A vontade aliada ao som, como as trompas de jericó aliadas à fé de quem as empunha. 

 O que queremos uns dos outros valida-se e mente-se em canção aberta, diálogos e monólogos tão velhos como o tempo que os constroem. Procura-se veracidade no conto popular, na repetição das gerações dentre o legado que a torre de babel nos deixou e hermes fez acreditar. É isto que chamamos lingua, e os seus derivados, o amparo do homem ou a volúpia do seu ego.


segunda-feira, 26 de abril de 2021

carpir

 às vezes pedem-me para ter fé. ou para sorrir e acenar mas parece-me sempre despropositado neste cortejo funebre dos nossos valores. obséquios de porcelana, reverências e vénias a reis depostos. frageis lamentos, o ténue gemido da humanidade sobre o chicote.

E sinto-me, vergo-me e contorço os cantos da boca em visível dor. Mas os milhões de olhos a minha volta clamam aos céus a sua existência e as vozes que choram servem o silêncio dos coniventes. 

as vezes pedem-me paciência e para ter compaixão, mas a turba é a maralha convulsa que se auto consome sem complacência, a mesma que se revolve em histerias colectivas. 

as vezes pedem-me para ser humano, mas não consigo deixar de o ser pois cogito o seu propósito.