domingo, 26 de dezembro de 2010

sem sentido?

"A sala tinha o cheiro de tabaco em todo o lado e eu deambulava pela folha em branco. Já me resignei à companhia do cigarro. Ainda não sei o que me trouxe aqui, se a solidão, se a simples saudade de revisitar este estado de poder, na beira da criação ou pelo desalento do nada, do desejo incompleto. Mas cansa-me, ter de colocar estes pequenos pedaços de ideias num plano onde ainda não existem. Tirar mais um pouco de mim, do escasso que resta. E se me dizem que ainda tenho muito para dar, minimizo-o. Nobre modéstia que quase soa a hipocrisia. E que tenho eu para dizer? Entediar-vos com um conjunto de indecisões e questões. Maldita moléstia de não ter vontade própria. O problema é que com este vaguear volto sempre a uma folha vazia. Quem sabe se procuro sempre um começo. Quem sabe se procuro apenas um deserto onde não conheça o meu nome. Nem o meu nem de ninguém."

sábado, 18 de dezembro de 2010

Estóico

"Tive de me destruír para poder aprender. Tive de destruír algo para poder prosseguir. Deitei paredes abaixo, lápides e ideias. Violentei segredos e desenterrei corpos. Desfiz o sacro e rejeitei o santo. Duvidei dos meus olhos e das minhas palavras. Curei feridas e fechei cicatrizes, escamoteei o meu corpo mas tatuei alguns nomes na minha pele. Chorei pelas perdas e pelas vitórias. Esperei pelo conforto mas abominei as condescendências. Perdi-me nas ruas e encontrei solidão. Destilei venenos e filtrei a alma. Revolvi a terra e arei o campo da minha vida na esperança de poder colher mais do que tempestades. Fui arrancado a ferros deste parto dificil. "Mas ainda estou cá." repliquei enquanto cerrava os punhos. Que se abata esta panóplia de verbos no que me resta da vontade. Esta que é comum a todos os homens. Hábil percepção de transformar o que nos ultrapassa em algo atingivel."

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Miradouro

"Tinha estado a chover e o chão estava escorregadio. O cheiro a terra molhada e folhas amassadas na relva eram embaladas pela canção do vento e do ondular dos ramos nas árvores. As nuvens fugiam pelo horizonte deixando os negros céus iluminados por uma lua em fase crescente. Ao lado dela brilhava uma estrela solitária que insistia em se mostrar mesmo que ofuscada pelas luzes da cidade. Lá em baixo dormitavam as vielas de uma cidade suja. O pequeno movimento nas ruas não se ouvia do miradouro, mas trazia ao de cima a insónia de uma cidade que não dorme. "Eu faço parte dessa gente. Esses que nunca dormem verdadeiramente" pensei. Um casal passou por mim e sentou-se num banco mais ao fundo. Apertava agora o vento e ele, levantou o braço e colocou-o à volta dela. Sentiu-se acarinhada e sorriu aquele pequeno sorriso que as crianças fazem quando lhes fazemos a vontade. O frio parecia não aplacar os dois jovens que se aninhavam calmamente como se fossem passar as próximas horas sem se moverem. Mordi o lábio enquanto tentava fechar a porta da memória. Tentei distrair-me enquanto deixava caír os olhos sobre a rio e a ponte. E nas pequenas luzes do cacilheiro que brilhavam ténues no breu das águas. Apaguei o cigarro, apertei o casaco e fui para casa. Hoje iria finalmente dormir. Mas amanhã será dia de nevoeiro e eu tenho de me levantar para lhe fazer frente."

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Vigília

"Ouço-te adormecer e estou ao teu lado. Hoje vivo um espaço diferente, o mesmo calor mas em lados opostos do sofá. A luz ténue desfila em pequenos raios que iluminam os cantos da sala. Hoje sinto-me útil e isso faz-me feliz. Nem que seja durante um pouquinho. Um pouqinho que enche este pequenito espaço que resta. Levanto-me e vejo a ninhada. Vejo os teus a crescer e sorrio como uma criança. Esta é como se fosse a primeira vez que os vejo tão pequenos. Como eu fui e como sempre quis ver. Ouço latir o pequeno bando de irmãos e penso que embora nunca o tenha estado, hoje já não estou só. Ajudo o mais pequenito a mamar e não deixo de pensar que sou filho único. Que não tive de me esforçar entre uma fraterna família. Às vezes sente-se sempre mais só aquele que sempre foi mais privilegiado. Volto para o meu lugar, e sento-me para escrever. Para te escrever.
E como sei que hoje dormes fico descansado estando acordado."

sábado, 20 de novembro de 2010

Marasmo

"Ontem tinha acabado de chegar a casa e sentei-me no sofá. Liguei a televisão à espera de adormecer, mas o dia vingava lá fora e eu contava os raios de sol que entravam pelos estores da minha janela. Fechei as cortinas e esperei que os meus olhos se habituassem ao escuro. "Sol de pouca dura. Sucedem-se os dias atrás uns dos outros, e conquanto e não sejam iguais, diria idênticos." - pensei, e por muito que quisesse estar noutro lado, não o queria. Esperei que o cansaço me levasse a melhor, e arrastei-me lentamente para a cama.
Hoje cheguei a casa e o dia sucedia-se, e contei os raios de sol na janela, Desliguei a televisão, liguei o rádio e esperei. Esperei por uma canção melhor. Uma que não me soasse a ruído."

sábado, 6 de novembro de 2010

Baluarte

"Viam-se as fogueiras pelos campos, pequenos focos de luz, confirmação de vida dispersa no breu da noite. E virou-se para oeste e correu o resto dos pontos cardeais. A vigia era constante e o medo maior. A omnipresença do seu baluarte podia ser observada a léguas, mas isso não serenava o seu ocupante. Sempre à espera de movimento, de validar o seu receio de inimigos, o seu temor escondido. Passaram-se estações atrás de estações, e do topo da sua torre viu apagar-se esses pequenos sinais de vida. Ainda não sabia se aguardava a vinda de ajuda ou de outras vagas hostis. Estas eram imagens perdidas de quem olha para um horizonte infecundo. Outros dias sucederam, e freneticamente corria de ameia em ameia na esperança de ver algo que justificasse a sua presença. Acelerava a sua velhice dia após dia no seu retiro, muralhado a solidão.
"E se não houver nada a esperar?" pensou. Tanto ecoou esta ideia que um dia decidiu sair do seu pequeno forte e abrir as portas de par a par. Sentiu-se aterrorizado pelo peso das estepes que o rodeavam, do silêncio dos terrenos, dos trilhos de quem não sabe se há-de ir ou vir. Mas não voltaria para uma casa vazia, não voltaria para a fortaleza que o defendia do nada."

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Alegoria

"Não queria ter acordado hoje e visto a luz lá fora. Não me queria ter levantado e visto a morte do sonho. Do mundo das ideias para o mundo do real. Triste alegoria da caverna. Pantomina de sombras e fumos. É fácil apaixonarmo-nos por uma ideia, por um ideal. Mas uma utopia só o pode ser se for vivida e consequentemente provada como inatingível. Este modelo adequa-se mais aos indivíduos do que ao colectivo. Adequa-se mais a mim que vivo das ideias e dos desejos, porque a realidade fica sempre aquém do imaginado. E saímos sempre a perder do embate com o real, desgaste após desgaste perde-se a vontade e o rosto, até que um dia vemos que já não nos sobra nada e deixamos de reconhecer a nossa sombra."

domingo, 31 de outubro de 2010

Terra de ninguém

"Esfreguei os braços para combater o frio. Para além da chuva que caía modestamente, o vento que se fazia sentir arrepiava-me completamente. Mas mantinham-me acordado e trazia-me à razão enquanto o meu corpo respondia involuntariamente ao chamamento das ruas. Passos incertos mas decididos em continuar e continuar e continuar... Movia o dínamo dentro de mim e esperava ir descarregando lentamente toda essa energia, esse motor que nunca desliga, um motriz frenesim composto de ideias e emoções, prestes a quebrar o obsidiano. Quando dei por mim estava naquela rua outra vez, na rua onde nos conhecemos, de onde partimos em busca de sinceras vénias e partilhas. Vi que esta solitária rua onde se cruzaram as vozes abafadas pela reticência de quem estende a mão, é uma fronteira entre o meu e o teu mundo. E eu transpunha essa terra de ninguém ignorando os cortes da gélida chuva de granizo, não fosse esta uma noite de finados."

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Pela avenida...

""Já tive a tua idade" pensei enquanto abria o chapéu de chuva e olhava a para os miúdos. A correria das crianças a chapinhar pela avenida em direcção à escola fez-me voltar atrás no tempo. Das longas manhãs chuvosas, do bulício dos carros no alcatrão molhado com o seu som característico. Das horas debitadas a escrever nos cadernos enquanto por momentos vislumbrava pela janela da sala de aulas os coloridos chapéus de chuva lá em baixo na rua. Das grandes chuvadas que faziam parar o discurso dos professores e do cheiro das folhas molhadas. Dos blusões molhados e das reprimendas maternais e matinais. Das luvas de lã e dos autocarros cheios de gente. Dos corredores da escola cheios de vida, ladrilho molhado e dos pátios cheios de folhas. Das contínuas a acalmarem o rebuliço constante da criançada e da som da chuva a bater nas vidraças da biblioteca da escola. "Já tive a vossa idade" pensei enquanto segui pelo mesmo caminho que percorri vez após vez, por onde decorei as paredes dos prédios e as pedras do passeio. Pelo mesmo caminho que me levou a casa dia após dia e hoje não sei quantos dias mais velho, só mudaram os rostos nas ruas."

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Alvorada de destroços

"Once more unto the breach, dear friends, once more;
Or close the wall up with our English dead.
In peace there's nothing so becomes a man"

Henry V - Shakespeare


"Devo desnudar-me, largar esta armadura e dar o peito ás balas. Uma vez mais combater na falha e pela falha. No local comum das minhas batalhas. Mas em nada é voraz, em nada combativo mas resignado. E se na batalha serei ferido, um amanhã vivo. Pela força da minha dor. Porque se não morri ainda me tenho para um novo embate. Segue-se a alvorada de destroços humanos, num conjunto de lacerados corpos desencontrados. Cuspo o ferro da minha boca, rubro caudal profuso, pulsar de vida desperdiçada. Desce o sol e prossigo em catarse porque dos mortos não reza a história."


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Medo

"Existem locais onde não me atrevo a entrar. Recônditos e escondidos ao primeiro olhar. São becos escuros, paredes meias com os recantos do duvidoso.

Procuro a coragem no fundo dos furiosos ventrículos que alimentam o medo de falhar. Enterrado por entre os outros músculos ele fala mais alto mas não mais forte. Quer por medo quer por coragem.

Persegue-me o inverso em vozes inconfundíveis. Todas elas de onde não sinto nem vejo, mas povoam os ecos e distancias. E tenho medo. Novamente."

terça-feira, 7 de setembro de 2010

infinito

"Estava sentado à mesa, quando me interpelaram novamente. Dizem-me que assim nunca descanso, mas eu contraponho que se no peito existe um músculo que nunca dorme, não estará ele mecanicamente mais cansado que o resto? E para quê descansar se nos sobra uma eternidade? Que fiquem cá os nossos feitos e os nossos filhos para não nos deixarem caír no infinito."

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Tríptico

ACTO I
"Compartimentamo-nos, todos os dias, de modo a que as peças fiquem sempre no mesmo sítio. Sempre prontas a ser usadas e reaproveitadas. Reciclamo-nos quase ininterruptamente. Processo de renovação, da cinza nasce e morre o homem. Deixo de ser eu para ser ainda mais. Desço do sorriso da certeza, reconfiguro as expressões para mais um dia a provar o inverso. Para cada metamorfose existe uma capa, para cada ilusão camaleónica um artífice. para cada eu um espelho. E por detrás dele desmonto-me e desconstruo-me e caio nas fantasias."
ACTO II

"Lavei a cara e olhei pela janela, o dia parecia mais um qualquer, mas já sabia de antemão que aquele era diferente. Era mesmo aquele. Franzi a testa e o sobrolho em descrédito. O espelho hoje não me levava de revés. Soube o que tinha a fazer e pus o plano em marcha. Arranjei-me o melhor que pude e saí à rua. Tentei tomar o dia como comum, independente dos sinais que borbulhavam no meu inconsciente. Não o temia, mas também não o esperava, o que sabia é que vivia um dia novo e era aquele, aquele em que após viver trinta anos no mesmo bairro, vi tudo como se fosse pela primeira vez, algum dia havia ser, algum dia havia de renascer dentro do rotineiro, dentro do habitual."

ACTO III
"Compus a armadura e enfrentei o dragão, São Jorge iluminado, radiante lança desferida ao coração da besta. Sorri vitorioso. Mas não havia público. Era um sorriso interior. Um sorriso de realização e de competência. Nada a temer, nada devia a ninguém a não ser a mim, devia-me a gratidão de ter a coragem de ser quem sou."

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

as armadilhas da culpa

"Colocadas entre os subterfugios do inconsciente, esperam o dia em que são despoletadas. Acutilantes mentiras e desilusões alimentam a auto comiseração da alma. Padeço eu e padeçemos nós. Um mal estar escondido e recatado, como a pobreza de um homem honesto. Serve-se apenas a metáfora pois honestidade não é adjectivada ao calculismo deste logro. Planta-se a semente onde lavouras foram criadas, esperado nada mais do despertar onde a velhice nos rege. Apartamo-nos do que queremos para nos escondermos na decepção. Colocamo-lo em perspectiva e enganamo-nos vez após vez, para que tudo seja intacto, neste recanto da nossa moral. Fechamos os olhos ao evento pois já está plantado, dormente embrião, à espreita da posse da razão. Grilhão do servil, cantiga de escárnio do inatingivel. Permitimo-nos o erro e esperamo-lo, como se o soubessemos de antemão."

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Vícios

"Desenrosquei a tampa do frasco, pensei em tomar mais um daqueles comprimidos e sentei-me à espera de conseguir decidir. Mais um daqueles comprimidos que me deixam dormir sem que tenha de passar pelo vestíbulo da incoerência. "Nada melhor do que estar sedado" pensei. Inócuo ao efeito placebo, as únicas vias para a libertação passavam pelo álcool ou por um novo fármaco. Durante muito tempo preferi o álcool; torpor violento e confuso, que nos restringe como de uma camisa de forças se tratasse. No entanto essa quietude forçada é como o olho da tempestade, sereno por breves momentos até se tornar avassaladora e destrutiva. Preferi levar a garrafa á boca. Maldito veneno. Como se eu estivesse a ser honesto. "Afinal a honestidade não é praqui chamada" pensei. O que eu queria mesmo era conseguir bloquear a minha vida da minha cabeça. Ou vice versa. E assim foi: de embriagado a escape, de escape a vício, de vício ao abandono."

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Distâncias

"Embalado pelos carris, nunca me pareceu tão longe um destino. Fica tudo para trás; horas e quilómetros, minutos e histórias, tão distantes como um dia de há anos atrás. Distante como de Caim para Abel. Faces da mesma moeda que nunca se chegam a conhecer, nem dão azo à tolerância. Convenço-me pois que as distâncias podem ser transpostas e que o querer moveu montanhas ao homem, um dito profeta. Mas hoje não existem inertes, existem peças que se movem e contraem, delicados mecanismos que depois de quebrados perdem a precisão. Hoje feri-te quando voltei atrás, quando o deja vu do momento de partida regrou as mãos do tempo e moldou horas desfazadas. Um relógio de corda de nada vale se não lá estão as mãos para o por a funcionar, nem se não houver quem o construa. Abandona-se o pulsar do coração, foge-se ao marasmo e quantifica-se os passos afastados nos entre tantos do cá e lá. Por já ter andado perdido de meridiano em meridiano prometo que a distância nunca mais me fará ferir alguém."

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Saudade

"Sabemos bem que esta é única, e solitáriamente nossa. Filhos dos idos passados e de calendas antigas, vivêmo-lo como ninguém. Dedicámos mais do que o verbo para o definir, dedicámos uma alma e com ela a canção das nossas raízes. Dedicámos as vozes em coro, no lamento da terra rasgada pelas mãos da necessidade. Áridas paisagens que pintaram o quadro dos nossos Invernos, da quebra dos nossos legados e tradições. Do testemunho de gerações arrancadas ao seu seio, da morte da semente, do roubo dos nossos filhos. Carpido em mármore e granito deixámos um pedaço da nossa melancolia, do agridoce que compõe o paladar dos nossos feitos. Etimologia constante no imaginário dos meus pares, esses outros que tanto corpo deram ao mundo, que deram as epopeias e os heróis aos comuns. Desses que inventaram adjectivos para tanto sangue derramado em praias longínquas. Das histórias criadas para amenizar a dor e tentar validar de todas essas existências arrancadas ao abraço da vida. Hoje é dia de homenagem. Hoje estou trajado com a capa da dor, e com os pés enterrados na areia solto um olhar vago ao mar enquanto espero por um amanhã que me cheira a salitre."

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Monstro

"Ontem; quando acabaste de falar; já eu estava no meu mundo. No canto do ringue, armado até aos dentes, pronto a matar e morrer, pronto para sofrer as dores que trago no meu nome. Quando acabaste de contar a tua história, já as minhas entranhas estavam em ebulição e o rubor da minha face denunciava o meu mal estar. Dissimulei-me de modo a que não percebesses ou pelo menos assim tento acreditar. Fachada atrás de fachada compunha-se a cena e o cenário para que a minha personalidade se pudesse retraír e contorcer. Artífices de actor. Após uns minutos ficou apenas o meu ego a gritar-me palavras de ódio e de ordem. A espicaçar e atiçar a fogueira do ciúme. Esse monstro voraz que atormenta até o mais santo dos cânones.O Adamastor bem conhecido do homem, acompanha-o de pecado em pecado á espera de se tornar o oitavo mortal. Dramático egocentrismo este de se querer mais do que se deve."

domingo, 1 de agosto de 2010

Ergo sum?

""Deixa de pensar" disseste-me de repente. "Se o fizer deixo de ser eu" respondi automáticamente. A ironia reside na excepção à regra. O automatismo da linguagem. Confirma-se pois a definição da/e excepção, totalmente adequada ao resumo deste diálogo. O meu problema é que não consigo desligar-me do mundo e da minha mente. Cogito, ergo sum. Ou melhor: Dubito, ergo sum. Onde há dúvida há espaço para erro. E onde há erro há questão. Completa-se assim o ciclo em segundos. Uma incessante inconstância da mente em busca da parábola perfeita. De uma metáfora que seja real ou de um eufemismo apropriado. E mesmo que o conseguisse, como é que deixaria de ser eu? Tentar descompensar este corpo, viciado no som da engrenagem da mente, no dissecar da semântica até que deixe de fazer sentido e tudo não passe de um aglomerado de letras. Ou contrariar esta vontade de olhar para além dos olhos? Como conseguiria eu sobreviver sem aquilo que mais me fascina. E teorizo até me fartar, porque só assim é que me sinto único e para descansar já me chega a eternidade."

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Cresci

"Posso começar pela minha rua. Pela ombreira da porta do prédio onde me sento hoje. Onde um dia já me pareceu grande, hoje não passa de uma porta diminuta para uma casa reduzida. Onde um um dia joguei à bola na minha rua, a "baliza" parecia enorme e não havia mãos para todo aquele espaço, hoje não passa de um pequeno salto entre paredes, onde descia rua abaixo nos carrinhos de rolamentos em velocidades mirabolantes que hoje não passa de uma suave descida, onde fazia corridas intermináveis com os meus carrinhos no lancil dos passeios, hoje desco o beco em três passadas. Onde uma cidade parecia um universo de pessoas não passa hoje de um pequeno formigueiro no meu quintal. Na televisão as imagens de outros países pareciam que pareciam tão distantes não passam de um passeio ali ao lado. Onde os anos que carrego não passavam apenas de um nebuloso imaginário de criança e hoje pesam como os céus nas costas de Atlas. Crescer em tamanho e espírito faz-nos pensar na escala em que as coisas se tornam. Ficou o espírito de criança para me ajudar a manter a inocência das coisas. Desses lugares comuns no secreto de cada um de nós. Mas há um custo em crescer, onde eu fico maior tudo fica mais pequeno."

domingo, 25 de julho de 2010

Fronteira

""Faço-te um favor e adianto-me já." Disse-te secamente, tentando subtraír-me a um intenso pranto. Falava a voz do medo e da razão. Era sinal que ainda não estava recomposto da batalha anterior. Se o exprimo assim, é porque fiquei por cá como um amputado de guerra. Decepado dos membros que ainda sinto, das mãos que ainda escrevem, dos olhos que ainda choram. Onde ainda correm impulsos para destinos obsoletos que nunca chegam a chegar. Apesar do golpe ser devastador, ainda tive a consciência de me afastar. Sem querer virar-te as costas, dei pequenos passos para trás e esperei estar a uma distância segura para saír. Tinha vontade de correr, de fugir ao desespero de olhar para a tua tristeza. A tua que tambem é minha. Mas o próximo passo já o daria só. "Longe da vista,longe do coração" disse para comigo. Mas a mentira por muito sumptuosa que seja é sempre um engodo. Pior ainda se o engodado somos nós."

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Antevejo-me

"Antevejo tempestade. Malditas premonições que me cansam, que me moem a consciência. Procuro sempre estar errado, mas a idade ensina-me que de acasos só o nome. Dilema do profeta, antítese à nascença, adjudicando a salvação por intermédio do purgatório. Forço-me a tentar ver o que aí vem e sei de antemão que é um cenário dantesco. Fecha-se o bastião, e levam-se os homens às ameias. Está na altura de enfrentar o fogo e enxofre. Fico apenas eu a observar, um espectáculo majestoso e fora de tempo, pois quando se abater, já Noé se salvou mas numa (b)arca vazia. Salve-se o que se pode, e cuide-se dos feridos porque dos mortos só lhes resta o esquecimento. Visões e retratos apagados, caducas folhas embaladas pelo vento. Sim é verdade, o vento traz nuvens e lamentos no seu canto. Essa é a canção da tormenta."

segunda-feira, 19 de julho de 2010

enquanto dormes

"Viras-te para o outro lado e abraço-te como de costume. Coloco o meu braço por debaixo do teu pescoço, beijas-me a mão e dizes-me timidamente "até amanhã" com voz de sono. Respiras suavemente ao som das minhas carícias no teu corpo. Já é hábito ver-te adormecer assim. Num abraço de gigante, prometo-te que nada te pode magoar, prometo-te estar ali, ao teu lado quando acordares. Declamo-te os meus delirios até sentir o teu peito pesado e o desfazar do teu aperto. Contemplo-te adormecida, acaricio os teus cabelos e sinto o tremor enlevado do carinho. Já dormes. Fico sempre mais algum tempo acordado, a imaginar o que te direi amanhã, a recear as palavras que ficam nos interlúdios, sempre a medo guardadas para um dia propicio, um eventual qualquer. Digo-te baixinho "gosto de ti" receoso que acordes e me ouças. Receoso de quebrar esta frágil aliança, construída de beijos e sorrisos. Aperto-te contra mim suavemente e convenço-me de que nunca me quero separar deste segundo. Enquanto dormes tento apaziguar esta fome voraz de te dizer o que já sabes e convenço-me da tua resposta. Fecho os olhos em busca do sono para afastar esse medo dos vindouros. Não obstante o meu sorriso enquanto dormes."

terça-feira, 13 de julho de 2010

Pai

"Ainda ontem sonhei contigo. E sei que vou continuar a sonhar até que me digam que já não estás cá. Faço-o de forma recorrente sem saber. Sempre no mesmo plano; o familiar; mas em situações diferentes. Já encarnaste tantas personagens no meu imaginário, e curiosamente todas tem uma posição de paternalismo, não fosse esse o teu papel. Vejo-te sempre como se tivesse dez anos, imagem que perdura na inocente memória infantil, preciosa lembrança que o meu subconsciente quer manter intacta, inalterada. Já la vão tantos anos sem ti e parece que nunca me acostumei à tua falta. A falta dos dias em que parecíamos uma família, dos dias em que jogávamos à bola, das vezes que te ia visitar ao trabalho, das cumplicidades que compõem os laços entre pai e filho e que só hoje aprendi a acarinhar. E nos sonhos choro sempre lágrimas de redenção, as lágrimas da saudade, as lágrimas que tu me ensinaste a soltar sem medos. Sonho sempre com os abraços e com os sorrisos. Onde parece que está tudo bem, e te venho pedir os conselhos de amigo, de quem nada mais quer que o bem de quem é sangue do nosso sangue. Acho que gostarias de saber que já me passaste o testemunho e que hoje já és ancião. Hoje também sou pai como tu e pergunto-me se a minha ausência também te faz sonhar comigo.

sábado, 10 de julho de 2010

num outro espaço...

"Custou-me passar a soleira da porta e entrar naquele mundo que não era o meu. Uma casa recheada de memórias, odores e sentimentos, ecossistema inóspito e hostil. Estava petrificado pelo medo de incorporar esse corpo estranho que emanava em tudo o que me rodeava. Não quis transparecer o meu mal estar e sorri. Decidi-me a entrar. Sabia bem para onde ia mas isso não impediu que estivesse mais preparado do que pensava. Dirigi-me para um canto enquanto arrumavas os restos de um passado espalhado pelo chão. Eram roupas e cartas, sapatos e fotos, perfumes e palavras nunca ditas. Afastei-me um pouco e deixei-te sózinha com os teus pensamentos. Quis ser apenas um espectador. Observei-te enquanto compunhas o lar. E com ele como me compunhas a mim num espaço desconhecido e invulgar. Se te pareci distante, é porque tu não sabes que ainda hoje sou um estranho em tua casa."

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Alugo-me

"Quem quer ideias e ideais? Vendo ao desbarato, ao preço da uva mijona, o verdadeiro negócio da china. Vendo a minha moral e a minha ética por algo que me seja mais prático no dia-a-dia. Como por exemplo uma bicicleta ou uma mala de viagem. Ninguém está interessado? Uma ocasião destas é de aproveitar e ainda sou capaz de incluír também os meus valores religiosos. Desde ateismo até ao xintoísmo tudo vale. Desde que me paguem. Para aqueles que não se satisfazem apenas com a psique, o meu ego em nada fica incomodado se eu proponho a venda o meu corpo. Alguém interessado? Desde a venda de órgãos, cobaia para novos fármacos ou simplesmente à prostituição. Porque não? Se todos nos prostituímos todos os dias em função do materialismo porque é que eu devia de ser diferente. Ao menos eu admito. O dinheiro dá-me jeito."

terça-feira, 6 de julho de 2010

Legado

"Era domingo. O dia em que convergem todas as necessidades afectivas de quem é pai, irmão, primo,tio, filho. O fim da semana culmina a olhar para o umbigo e a cuidar desse cordão umbilical que para além do sangue que partilha, alimenta e nutre o próximo. O nosso próximo. Ao descer a calçada vislumbrei indiscretamente, mesas repletas de crianças e pessoas a comungar. E sorrisos e choros. "À hora do jantar em vez de andar por aqui sozinho, devia de estar ali... numa casa qualquer, com uma família qualquer, mas minha."

Sofro de um estado anímico-anémico, ou seja estou à mingua. Falta-me a base que compõe o mundo, onde repousam e se apaziguam as maleitas universais. Esse conforto que existe no dar e receber. Só porque sim. Só porque se ama. Mas saio de uma disfuncional para uma que não existe. E resta-me o passado de uma e o futuro de outra.

"Há sempre um amanhã. O legado é que conta." pensei.

E eu do lado de fora; na calçada; á espera que uma dessas janelas ou uma dessas portas se abrisse e me convidassem a entrar. Só porque sim."

sábado, 3 de julho de 2010

Adjectivação

"Não posso falhar porque não há nada para falhar, pois nada falha quando nada se move. " - ouviste-me dizer. Mas há algo a perder. Antevejo o inapelável sentimento de roubo, de rapto da vontade. Drenada a iniciativa de superar-me constantemente, tropeço no sossego e na conveniência. "Conivência" disseste-me, afastando a minha mão da tua cara. Quiseste chamar-me preguiçoso, inepto, estagnado. E o pior é saber que tens razão. Mas nunca to direi nem admitirei. Se faltou algum adjectivo foi "Orgulhoso". Desse já eu estava a espera há muito tempo. O que me vale é que os meus defeitos são constantes e sei bem com o que posso contar. "E tu? Sabes com o que é que podes contar?" - perguntei-te. Mas não esperei resposta.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Acto II

"Às vezes ainda passo pela tua sepultura e contemplo a tua lápide. Esse padrão que assinala a tua existência; gravado em pedra, chorado em sal. Mas hoje não venho para chorar. Limpo a poeira no teu nome, e ajoelho-me perante a tua efeméride. A elegia já te era merecida e é irónico pensar que de nada servem as palavras se não as dissermos, se não verbalizarmos o que nos emana de cá de dentro, mas já estou sem forças para as articular. Especialmente para uma plateia de sombras. Prostrado, sigo a liturgia; o exumar de tantos momentos, de tantos destroços de tempo. O reavivar dessa pequena centelha que existiu para além de ti. Para além de nós. Mas desta vez nada renasce da pira fúnebre que compôs o cortejo.

Levanto-me e sacudo a terra, largo um ultimo olhar á relutância. Volto-me para alameda cipreste e deixo o sacrossanto para os fieis, as quimeras para quem sonha, e o pecado para quem o expia. Parece-me que ainda espero a negação desta realidade, uma forma de poder sair do compasso e quebrar a engrenagem que criou este segundo. Serve-me a ilusão por agora, porque não é mais do que isso. Agora apercebo-me ter vindo ao sitio certo, porque hoje vim dizer o adeus que já devia de ter dito hà muito tempo."

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Platonismos

"Abre-se já uma veia e sangra-se o mal de vez. Secular antídoto para a maleita. Diziam eles. O problema é quando o mal chega ao coração. Daí é levado para todo o corpo. A cada batimento mais veneno percorre as artérias, mais deturpa o raciocínio, mais infecta o julgamento. A mente deixa de reconhecer os seus atalhos e sinapses, perde-se nos trejeitos e manias e procura livrar-se do peso do corpo. Mas o mal já está feito, e espalhado o terror pelo seu ocupante, vive por intermédio do seu veículo. Deturpa a visão, confunde o tacto e transforma a linguagem. Obstinada enfermidade que nos reduz a liberdade. Ou o que nos resta dela. Cede-se então à vetusta lição e procuramos as punções para nos afastar de uma vida de tísico. Infelizmente o mal é comum, mas não é vulgar e a intensidade da sua violência é igual à procura do antídoto. Por isso, quem é que já não sangrou para tirar o veneno do corpo? Não que ele mate, mas rouba-nos anos de vida."

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Plágio

"Podemos fazer tanta coisa, podemos ser tantas pessoas que até podemos ser cópias perfeitas. O problema é que a cópia de tão perfeita que é, pode ser enganadora e tomar as rédeas da realidade. Podemos tocar-nos mas não nos ter, podemos beijar-nos mas não sofrer, podemos sorrir mas não amar. E quando tudo isso está no limiar dos nossos olhos; na ponta dos dedos; é difícil não ceder a esse engano. Colocado o molde real na redoma habitual, deixa-mo-lo ganhar pó, serve de exemplo para os restantes clones, o modelo de como deveria ser, invariável ícone de excelência. A dor lancinante sucede-se quando não podemos copiar o que sentimos. E de todas as cópias a única insubstituível é a mais plagiada. Simulação de existência, cíclico pleonasmo, prenúncio de epílogo. É como ver o dia a morrer pela enésima vez, por intermédio do seu amanhecer. Para que seja assente, esta cópia não mente, apenas ganhou vida própria para tentar quebrar o marasmo de não saber o que fazer face ao seu criador."

Sépia

Haverá dias em que tudo se torna isolado
Haverá palavras sem destino
Pormenores de sonhos
Nublados beijos de sépia

Tenho medo desses dias
E arrepender-me-ei do que nunca fiz
Olharei para ti, e calejado
Amaldiçoarei a minha loucura

Aí estarei longe de mim...
Mas perto de ontem
Onde o amor é uma psicose a dois
Onde um homem se tornou pó

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ode à loucura

"Ainda não sei onde estive mas hoje só te tenho a ti, neste lugar comum, monótono. Desligo os meus sentidos mais uma vez, e sucedo-me. Dou conta de ti outra vez. Introduzes-te sempre nos espaços vazios. Preenches o silogismo quando a lógica não dá azo à razão. Plano disforme, arquitectura complexa, escala desmedida. Maravilhosa epifania, o fascínio do ilógico tecido enquanto encho os pulmões, enquanto pisco os olhos, arritmia do meu ser."


sábado, 15 de maio de 2010

R.E.M.

"Prefiro dormir. Prefiro não estar cá. Aliás, estar mas não estar, porque me atemoriza a ideia da não existência e a eventualidade de um plano não fisico, ou seja os ultimos segundos de consciência da sua própria entidade. Como solução preferia dormir por muitos anos e entregar-me a esse ócio inconsciente, submundo de Freud e afins. Mas se tivesse de escolher, dormir sem sonhar. Porque sonhar já não me diz nada. E todos esses planos confusos e desconexos não são mais que ditirambes de um louco. Isso já eu tenho sem dormir. Todos os dias. E mesmo considerando um plano de inexistência, quão mau seria sonhar para toda a eternidade sem ter a hipótese de o concretizar? Tantos são os mitos condenados a existências torturadas que assim se reinventava mais um nesse Olimpo onírico. Assente-se a redundância. Por isso prefiro dormir, porque nos permite sempre o acordar, por muito violento que seja."

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Diálogo

"São tantas as vezes em que não creio em mim que ás vezes parece que não creio em nada. Para quem já perdeu a fé na humanidade talvez ainda haja uma hipotese para o individuo. Com isto quero dizer que talvez ainda haja fé pra mim. Pelo menos assim me tento enganar. E é tão fácil enganarmo-nos. Por debaixo da superficie pensamos sempre coisas diferentes daquelas que dizemos. Tem sempre tudo uma intensidade diferente quando vem lá da tripa. E são esses nós e voltas que deixamos ficar lá perdidos dentro de nós. Ai do dia em que os queira desatar. Cabo das tomentas e o diabo a sete. É o purgatório que me está reservado por me enganar constantemente. Por não dizer aquilo que penso e sinto. Por ser um cínico, com a melhor das intenções, para nos poupar a algum amargo de boca. É por causa disso que não dialogamos correctamente. Porque o emissor é omissor. Porque dizemos apenas meias verdades, meias frases. Essa é a razão para todas aquelas vezes em que entro mudo e saio calado."

terça-feira, 11 de maio de 2010

Genuíno

“Fizeste-me soltar uma gargalhada. Daquelas sonoras que são capazes de calar toda a gente à mesa. Não me pude conter enquanto ouvia as tuas peripécias e tentava imaginar-te nos cenários que descrevias. Melhor do que isso só imaginar-me lá presente. Só de ouvir a tua voz deixou-me contente, mas mais, muito mais por saber que mudaste. E para melhor. E se me serve de consolo, já consigo rir contigo. Genuínamente.”

domingo, 9 de maio de 2010

Insónia

"Fiquei mais uma noite em branco a pensar em ti. Pior. Em ti e em mim. Esse conjugar de verbos na primeira pesssoa do plural que me tira o sono; noite sim, noite não. Nevralgia persistente, maleita de estimação. Eco de um espectro doloroso que me arrepia a espinha e que me envergonha, essa vontade inapelavel de chorar e de gritar e exorcizar esses "demónios" e traições. Levantei-me outra vez da cama, acendi um cigarro e percorri frenéticamente para a frente e para trás o pequeno espaço da minha sala.

"Preciso de acalmar, preciso saír daqui, preciso saír de mim."

Mas isso não existe. O que existe é aquela enorme sensação de erro cometido e a impotência para o poder corrigir. E aceitá-lo ao ponto de turbar-se o raciocinio. A verdade é que ninguém tem verdadeiramente uma segunda oportunidade na vida, mas o que temos é muitas oportunidades semelhantes. Mas há quem não vá prevenido e que ainda sonha com redenções. Esfreguei os olhos à espera de sentir algum cansaço que me permitisse acalmar para adormecer. Nada. O tempo corria para o seu para o destino crepúscular e eu definhava. Fui até ao espelho e pelos olhos da insónia tive de ver que existe algo que me ultrapassa, algo mais além. Para além da palidez do meu sorriso e da agonia do auto-flagelo, existem carros e ruas e prédios e casas e familias e pessoas e vida por aí afora. Toda ela tão diferente de mim; tão desconexa da minha realidade, esses outros problemas e responsabilidades, essas outras noites perdidas que não as minhas, que ás vezes até as sinto fraternas em adversidade. Mas é assim que a vida se propõe a ensinar-nos algo. Pela dor e pelo erro. Agora os erros que cometi, esses já ninguém mos tira."

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Paupérrimo

"Estamos falidos", apregoam as vozes em coro na televisão. Desdobram-se em gravatas e lacinhos, vozes mudas e olhares cabisbaixos. Mas ninguém se convence do que está para vir é como apregoam. Será muito pior. Hoje, perdidos num mar de dìvidas e consumo, viramo-nos novamente para a esmola, para uma vida de remediado ou de remendado. Assim se espalha essa doença chamda miséria. Nem coelhos da cartola, nem ases na manga, nem um milagre de Santa Iria pode reavivar este povo português, que orfão de nascença, já está falido há muitos anos. Especialmente falido de homens e governantes, falido de atitude e valores mas rico de maneirismos e demagogia. Felizmente sou português e já sei conviver bem com as meias verdades e meias rações, com o olhar vago de quem apostou e perdeu um futuro. Mas como eu já não é só uma geração, é todo um povo e uma história que tanto deu de si que agora só lhe resta o abandono. Se hoje em Portugal há alguém que veja o copo meio cheio, eu vejo-o meio vazio.

domingo, 18 de abril de 2010

Fuga

Hendaye. 16:30. Partida de Santa Apolónia. Todos os dias vejo o teu nome no quadro das partidas e sonho em virar para a tua plataforma em vez de entrar no metro. Esse escape à monotonia da minha vida está tão próximo que até lhe sinto o cheiro. O cheiro das árvores e florestas enquanto rasgamos a paisagem numa velocidade de cruzeiro. O cheiro do óleo dos travões do comboio ao chegar a uma estação remota, perdida no meio de um nenhures idílico. O cheiro a liberdade onde todas as caras que vejo são novas. O sonho de uma longínqua aventura começa. O ponto de partida perfeito para me perder e esquecer quem sou.

sábado, 17 de abril de 2010

Subterfúgio

"Levantei a cabeça do copo e limpei o suor da testa. Ao tentar levantar-me parti os copos que estavam na mesa. Alguns corpos olharam-me de soslaio em escárnio ou repreensão. Cambaleei em direcção à saída. Arrastei a minha carcaça até duas ruelas acima. Tinha chegado ao meu limite e sentei-me para não caír. Acendi um cigarro e olhei em redor. Nem vivalma para testemunhar o meu ridículo; ou para minorar esse desejo escondido que tenho de que os outros se compadecem de mim. Entorpecido, tentei afastar as tuas memórias e cauterizar essa ferida. Mas o meu lado masoquista não deixa de revolver e ruminar essas lembranças. Não que tenha prazer na dor, mas ela serve-me de muleta para me sentir vivo. Quis tanto estar errado, mas a realidade acaba sempre por apanhar-nos sem resposta. Num momento de lucidez ganhei forças para me levantar. Não como acto de coragem mas sim de desespero. Afoito ao resto de um mundo turvo pensei: "Quantos dias passaram? Quantos minutos perdi a afastar-te da minha vida?" Sem saber melhor apercebi-me que já tinha a resposta. "Hoje deixo de os contar. Hoje deixo de ser teu", pensei, enquanto me arrastei até casa."

sábado, 10 de abril de 2010

Ódio

Ponho-me à prova todos os dias
Deixo que o meu ódio se apodere de mim
Sinto a dor na pele
Mas o que não me mata apenas me deixa mais forte

O meu triunfo é amargo
Pois alimento o meu descontentamento
E semeio a desconfiança
Dentro de mim

Deixo que as diferenças me separem de ti
Viro as costas ao teu olhar
Cresce a distância
Nasce a repulsa

sábado, 27 de março de 2010

Convulsão

"Limpei a boca com as costas da mão. O pútrido cheiro a bílis já se tinha entranhado nas narinas enquanto cuspia o resto do fel. O sangue fervia na fornalha do meu peito e tentava saír pelos poros da minha face. Tentei levantar-me mas não tinha força nas pernas. Aturdido pelas convulsões perdi o equilibrio e encostei-me à parede. Sem saber como dirigir os meus esforços só me conseguia lembrar do que me tinhas dito há minutos atrás. Como a espada de Damócles, o absoluto das tuas resoluções pendia sobre a minha cabeça e tinha-me decepado as forças. Tinhas retirado o resto que existia em mim na tua pessoa. Esse pequeno lugar que nos restava, que eu acarinhava e que tudo fiz para conservar. Sonhava existir alguém que dedicasse o seu tempo a pensar em mim. Foste tu. Mas hoje deixavas de existir e eu passava a ser um erro. Vomitava compulsivamente e purgava o meu amor por ti. Exactamente por onde me doía mais. Pelas entranhas."

quinta-feira, 25 de março de 2010

Insónia

"Contorcia-se envolto nos lençois, sem saber onde estava, mas reinava na terra dos sonhos e das ilusões, um mundo feito de retalhos de emoções e memórias. Despiu-se da realidade no preâmbulo pré inconsciente onde todos os nossos pensamentos parecem estar interligados numa espécie de torpor ou embriaguez. Heroi das epopeias inesperadas, enfrentava as suas medusas e ciclopes por onde feéricas odes ao subconsciente alimentavam um sono profundo. Onde horas e dias se rendeu à fantasia e ao desejo, outros ecos rendiam apenas preciosos minutos concedidos a um corpo quebrado. Percorria mundos paralelos e esboços de tempos desconexos, uma cascata de acontecimentos sem propósito. Mas mantinha a remota ligação ao carcere do seu corpo, diluía a sua viagem e ganhava alma presente. Apartado do abraço da fantasia, descia da sua distopia, acoradava para um amanhã solitário que tinha custado a imaginar antes de adormecer."

sábado, 13 de março de 2010

Norte

Tenho medo
Sempre tive
O suficiente para perceber que de medo
Vive a alma
Ou algo que se assemelhe

Perecemos pelo medo
Vivemos em suplicio
Sem sequer sabermos
Onde residimos
Porque não sabemos onde estamos

sexta-feira, 5 de março de 2010

karma's a bitch...

O ano começou nos seus tons mais sombrios e macilentos. Cinzento se preferirem. O barómetro apontava para a chuva. Ininterrupta e imperdoavel, levou consigo gerações e pedaços de história, e se algo deixou para trás, foi a paisagem devastada dos rostos de quem sofre a invernia na primeira pessoa. Mas não havia sinais de abrandar. Em passo veloz e em sintonia com o resto do mundo, tambem eu fui levado na enxurrada. Felizmente já estava avisado. Não podia ser o único a remar contra a maré! Pintei o quadro mais negro que este inverno antevia. E não me enganei.

quinta-feira, 4 de março de 2010

afinal que dia é hoje?

Há dias em que parece que as nossas forças se escapam, e que não temos nenhum controlo sobre isso. É rotinar-me e conformar-me ao dia-à-dia que no final de contas mais parece uma amalgama de horas, pois não detecto os traços que os diferenciem uns dos outros. E é justamente aí que me aborreço. Nesse lugar comum que chamo "mediocridade", que encontro os meus dias, uns após outros. Hoje queria ter acordado em fúria, mas acho que nem tenho paciência para me irritar. Hoje queria ter acordado com paixão mas já me apercebi que afinal isto aqui no peito não passa de um musculo solitário e esforçado. Hoje queria ter acordado outro, mas já compreendi que de alter ego só me resta a imagem que vejo no espelho.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Cronos II

Onde já vi o futuro

Estava só

Neste momento indiferente

Horas sobre minutos

As forças que me movem

Cronologia em testemunhos

Dissolvi os dias

Em minutos sobre segundos

Já houve uma hora,

Um relato de escrivão

Marcada no tempo

Em segundos sobre um piscar de olhos

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Entre o hoje e o amanhã

"Hoje fora mais um dia de suplício, onde se arrastou até à ultima hora da sua labuta. Os rostos exaustos dos demais desconcertavam-no. O compasso do metro nos carris embalavam-no numa dormência típica de um sonâmbulo. Chegou à sua paragem e como de habitual deparou-se com o vazio da estação, esse ponto de passagem que reflecte a efémera apatia dos seus transeuntes. Compôs a gola do casaco ao sentir as gélidas mãos do inverno e resignou-se ao chamamento de um pequeno consolo na imagem do seu lar. A noite já avançada abraçava os exilados e rejeitados do dia. Faltava agora a procissão pelas ruelas até chegar a casa. Enfermo e titubeante prosseguiu resignado; escondendo as vísceras da sua dor num sorriso mal amanhado."

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Cronos

Gota a gota, grão a grão
Eco de quartzo
Raio de sol,
Eclipsas-te do teu mundo sub-repticiamente

Em compassos e medidas
Um cortejo infinito de repetições
Àtomo dos nossos raciocinios
Incompreendido e fugaz

Cicatriz eterna
Constante definhar
O teu legado perpetua-se
Fome voraz de existência

Ontem, ignaros
Hoje, avançamos destemidos
Amanhã, não saberemos voltar atrás

domingo, 31 de janeiro de 2010

Re"Ciclo"

Reinvento-me das mais variadas formas para ser cada vez mais eu, mais uno. O problema é que há sempre algo que é impossivel reciclar, onde colocar então esse lixo senão num canto obscuro da minha memória? Como eu somos milhões, que nos tentamos adaptar a vida e as pessoas que nos rodeiam, e no entanto sentimos que fica sempre algo àquem , algo que nunca se transformará num producto acabado. Perfeccionismo a mais e sorte a menos.

domingo, 24 de janeiro de 2010

deixa-me algo...

Hoje foste embora lá de casa, e não deixaste nada. Absolutamente nada. Num uma escova de dentes ou uma peça de roupa, nem um tupperware esquecido. Nem deixaste o cheiro. É estranho pois sempre que vais deixas sempre algo para trás, e hoje não deveria ser excepção. No entanto já me habituei às tuas excepções, às tuas pequenas imperfeições que te compôem e que eu tento sempre integrar em mim. Mas nem essas imperfeições deixaste, nem uma carta, nem um beijo esquecido na almofada. Hoje quando chegar a casa,vou ter apenas uma ténue imagem de ti sentada no sofá, como memória. E como todas as pessoas sabem, as memórias desvancem com o tempo...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Crepúsculo

É dificil lidar com a solidão. O mais dificil, é quando estamos acompanhados, lançamos sinais de fumo ou foguetes de sinalização, em jeito de "salvem-me que estou aqui!", e sentimo-nos sós. É olharmos nos olhos dos nossos companheiros e não nos vermos espelhados. É sorrirmos para a face vazia de quem está ao nosso lado e perceber que afinal parece que nunca nos vimos antes. É aceitar que os diálogos se tornem monólogos. É tentar reciclar uma vida, nos escombros de outra. É saber que se perdeu, mesmo quando já ganhámos. É como chorar sem lágrimas.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

The sad truth...

Há noites em que dormir acompanhado é o mesmo que acordar sózinho.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Hoje...

Deixei de me preocupar se atendes o telefone, ou se vens cá a casa, deixei de me preocupar se dormimos na mesma cama ou se jantamos à mesma hora, deixei de me preocupar se andas sózinha na rua à noite, deixei de me preocupar se tens uma palavra para me dizer, deixei de me preocupar se preferes a companhias dos outros à minha, deixei de me preocupar com o tudo e o nada.
Hoje preocupo-me comigo.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Trabalhadores de fim-de-semana

Nós, os trabalhadores de fim-de-semana, por intermédio desta carta, juramos solenemente:

- Ir trabalhar de manhãzinha enquanto tu dormes após uma noite de copos,

- Ir trabalhar de manhãzinha e encontrar todo o comércio fechado aos domingos,

- Ir trabalhar todos ressacados da noite de sexta feira passada,

- Aceitamos o gozo dos restantes 90% da população que descansa ao fim-de-semana,

- Aceitamos o facto de que nas nossas folgas aos dias de semana, não temos amigos que possam vir saír á noite connosco,

- Aceitamos o facto de não termos oportunidade de ver todas aquelas séries e filmes de jeito que passam na televisão aos fins-de-semana,

- Aceitamos o facto de nunca conseguirmos ver os jogos de futebol do nosso clube,

- Aceitamos o facto de muitos de nós não terem direito a horas extraordinárias apesar de trabalharem os domingos,

- Compreendemos a necessidade de providenciar os serviços necessários nos dias em que ninguém precisa ou se preocupa com eles,

- Aceitamos as diferenças de horário dos transportes públicos que nos atrasa a vida constantemente,

Assim o entendemos correcto e justo como de acordo com o establecido pelos padrões actuais de vida em sociedade, e abaixo assinamos.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Partir...

Às vezes tenho vontade de partir, mas não sei bem para onde. Todos os dias passo na estação de comboios e surge-me aquela ideia de me meter num! E ir para longe, para o remoto e esquecido, para onde possa ser uma outra pessoa. Ser aquela pessoa que sempre aspirei ser, uma pessoa melhor. Mas não é apenas esse o motivo, é também o encanto da viagem, desse momento de viragem onde deixamos algo para trás, dessa magia que só os comboios sabem dar, dessa canção de embalar sobre carris, desse cheiro a terra e aventura. Mas não é hoje, nem amanhã... será num dia qualquer, talvez...