quinta-feira, 29 de julho de 2010

Cresci

"Posso começar pela minha rua. Pela ombreira da porta do prédio onde me sento hoje. Onde um dia já me pareceu grande, hoje não passa de uma porta diminuta para uma casa reduzida. Onde um um dia joguei à bola na minha rua, a "baliza" parecia enorme e não havia mãos para todo aquele espaço, hoje não passa de um pequeno salto entre paredes, onde descia rua abaixo nos carrinhos de rolamentos em velocidades mirabolantes que hoje não passa de uma suave descida, onde fazia corridas intermináveis com os meus carrinhos no lancil dos passeios, hoje desco o beco em três passadas. Onde uma cidade parecia um universo de pessoas não passa hoje de um pequeno formigueiro no meu quintal. Na televisão as imagens de outros países pareciam que pareciam tão distantes não passam de um passeio ali ao lado. Onde os anos que carrego não passavam apenas de um nebuloso imaginário de criança e hoje pesam como os céus nas costas de Atlas. Crescer em tamanho e espírito faz-nos pensar na escala em que as coisas se tornam. Ficou o espírito de criança para me ajudar a manter a inocência das coisas. Desses lugares comuns no secreto de cada um de nós. Mas há um custo em crescer, onde eu fico maior tudo fica mais pequeno."

domingo, 25 de julho de 2010

Fronteira

""Faço-te um favor e adianto-me já." Disse-te secamente, tentando subtraír-me a um intenso pranto. Falava a voz do medo e da razão. Era sinal que ainda não estava recomposto da batalha anterior. Se o exprimo assim, é porque fiquei por cá como um amputado de guerra. Decepado dos membros que ainda sinto, das mãos que ainda escrevem, dos olhos que ainda choram. Onde ainda correm impulsos para destinos obsoletos que nunca chegam a chegar. Apesar do golpe ser devastador, ainda tive a consciência de me afastar. Sem querer virar-te as costas, dei pequenos passos para trás e esperei estar a uma distância segura para saír. Tinha vontade de correr, de fugir ao desespero de olhar para a tua tristeza. A tua que tambem é minha. Mas o próximo passo já o daria só. "Longe da vista,longe do coração" disse para comigo. Mas a mentira por muito sumptuosa que seja é sempre um engodo. Pior ainda se o engodado somos nós."

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Antevejo-me

"Antevejo tempestade. Malditas premonições que me cansam, que me moem a consciência. Procuro sempre estar errado, mas a idade ensina-me que de acasos só o nome. Dilema do profeta, antítese à nascença, adjudicando a salvação por intermédio do purgatório. Forço-me a tentar ver o que aí vem e sei de antemão que é um cenário dantesco. Fecha-se o bastião, e levam-se os homens às ameias. Está na altura de enfrentar o fogo e enxofre. Fico apenas eu a observar, um espectáculo majestoso e fora de tempo, pois quando se abater, já Noé se salvou mas numa (b)arca vazia. Salve-se o que se pode, e cuide-se dos feridos porque dos mortos só lhes resta o esquecimento. Visões e retratos apagados, caducas folhas embaladas pelo vento. Sim é verdade, o vento traz nuvens e lamentos no seu canto. Essa é a canção da tormenta."

segunda-feira, 19 de julho de 2010

enquanto dormes

"Viras-te para o outro lado e abraço-te como de costume. Coloco o meu braço por debaixo do teu pescoço, beijas-me a mão e dizes-me timidamente "até amanhã" com voz de sono. Respiras suavemente ao som das minhas carícias no teu corpo. Já é hábito ver-te adormecer assim. Num abraço de gigante, prometo-te que nada te pode magoar, prometo-te estar ali, ao teu lado quando acordares. Declamo-te os meus delirios até sentir o teu peito pesado e o desfazar do teu aperto. Contemplo-te adormecida, acaricio os teus cabelos e sinto o tremor enlevado do carinho. Já dormes. Fico sempre mais algum tempo acordado, a imaginar o que te direi amanhã, a recear as palavras que ficam nos interlúdios, sempre a medo guardadas para um dia propicio, um eventual qualquer. Digo-te baixinho "gosto de ti" receoso que acordes e me ouças. Receoso de quebrar esta frágil aliança, construída de beijos e sorrisos. Aperto-te contra mim suavemente e convenço-me de que nunca me quero separar deste segundo. Enquanto dormes tento apaziguar esta fome voraz de te dizer o que já sabes e convenço-me da tua resposta. Fecho os olhos em busca do sono para afastar esse medo dos vindouros. Não obstante o meu sorriso enquanto dormes."

terça-feira, 13 de julho de 2010

Pai

"Ainda ontem sonhei contigo. E sei que vou continuar a sonhar até que me digam que já não estás cá. Faço-o de forma recorrente sem saber. Sempre no mesmo plano; o familiar; mas em situações diferentes. Já encarnaste tantas personagens no meu imaginário, e curiosamente todas tem uma posição de paternalismo, não fosse esse o teu papel. Vejo-te sempre como se tivesse dez anos, imagem que perdura na inocente memória infantil, preciosa lembrança que o meu subconsciente quer manter intacta, inalterada. Já la vão tantos anos sem ti e parece que nunca me acostumei à tua falta. A falta dos dias em que parecíamos uma família, dos dias em que jogávamos à bola, das vezes que te ia visitar ao trabalho, das cumplicidades que compõem os laços entre pai e filho e que só hoje aprendi a acarinhar. E nos sonhos choro sempre lágrimas de redenção, as lágrimas da saudade, as lágrimas que tu me ensinaste a soltar sem medos. Sonho sempre com os abraços e com os sorrisos. Onde parece que está tudo bem, e te venho pedir os conselhos de amigo, de quem nada mais quer que o bem de quem é sangue do nosso sangue. Acho que gostarias de saber que já me passaste o testemunho e que hoje já és ancião. Hoje também sou pai como tu e pergunto-me se a minha ausência também te faz sonhar comigo.

sábado, 10 de julho de 2010

num outro espaço...

"Custou-me passar a soleira da porta e entrar naquele mundo que não era o meu. Uma casa recheada de memórias, odores e sentimentos, ecossistema inóspito e hostil. Estava petrificado pelo medo de incorporar esse corpo estranho que emanava em tudo o que me rodeava. Não quis transparecer o meu mal estar e sorri. Decidi-me a entrar. Sabia bem para onde ia mas isso não impediu que estivesse mais preparado do que pensava. Dirigi-me para um canto enquanto arrumavas os restos de um passado espalhado pelo chão. Eram roupas e cartas, sapatos e fotos, perfumes e palavras nunca ditas. Afastei-me um pouco e deixei-te sózinha com os teus pensamentos. Quis ser apenas um espectador. Observei-te enquanto compunhas o lar. E com ele como me compunhas a mim num espaço desconhecido e invulgar. Se te pareci distante, é porque tu não sabes que ainda hoje sou um estranho em tua casa."

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Alugo-me

"Quem quer ideias e ideais? Vendo ao desbarato, ao preço da uva mijona, o verdadeiro negócio da china. Vendo a minha moral e a minha ética por algo que me seja mais prático no dia-a-dia. Como por exemplo uma bicicleta ou uma mala de viagem. Ninguém está interessado? Uma ocasião destas é de aproveitar e ainda sou capaz de incluír também os meus valores religiosos. Desde ateismo até ao xintoísmo tudo vale. Desde que me paguem. Para aqueles que não se satisfazem apenas com a psique, o meu ego em nada fica incomodado se eu proponho a venda o meu corpo. Alguém interessado? Desde a venda de órgãos, cobaia para novos fármacos ou simplesmente à prostituição. Porque não? Se todos nos prostituímos todos os dias em função do materialismo porque é que eu devia de ser diferente. Ao menos eu admito. O dinheiro dá-me jeito."

terça-feira, 6 de julho de 2010

Legado

"Era domingo. O dia em que convergem todas as necessidades afectivas de quem é pai, irmão, primo,tio, filho. O fim da semana culmina a olhar para o umbigo e a cuidar desse cordão umbilical que para além do sangue que partilha, alimenta e nutre o próximo. O nosso próximo. Ao descer a calçada vislumbrei indiscretamente, mesas repletas de crianças e pessoas a comungar. E sorrisos e choros. "À hora do jantar em vez de andar por aqui sozinho, devia de estar ali... numa casa qualquer, com uma família qualquer, mas minha."

Sofro de um estado anímico-anémico, ou seja estou à mingua. Falta-me a base que compõe o mundo, onde repousam e se apaziguam as maleitas universais. Esse conforto que existe no dar e receber. Só porque sim. Só porque se ama. Mas saio de uma disfuncional para uma que não existe. E resta-me o passado de uma e o futuro de outra.

"Há sempre um amanhã. O legado é que conta." pensei.

E eu do lado de fora; na calçada; á espera que uma dessas janelas ou uma dessas portas se abrisse e me convidassem a entrar. Só porque sim."

sábado, 3 de julho de 2010

Adjectivação

"Não posso falhar porque não há nada para falhar, pois nada falha quando nada se move. " - ouviste-me dizer. Mas há algo a perder. Antevejo o inapelável sentimento de roubo, de rapto da vontade. Drenada a iniciativa de superar-me constantemente, tropeço no sossego e na conveniência. "Conivência" disseste-me, afastando a minha mão da tua cara. Quiseste chamar-me preguiçoso, inepto, estagnado. E o pior é saber que tens razão. Mas nunca to direi nem admitirei. Se faltou algum adjectivo foi "Orgulhoso". Desse já eu estava a espera há muito tempo. O que me vale é que os meus defeitos são constantes e sei bem com o que posso contar. "E tu? Sabes com o que é que podes contar?" - perguntei-te. Mas não esperei resposta.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Acto II

"Às vezes ainda passo pela tua sepultura e contemplo a tua lápide. Esse padrão que assinala a tua existência; gravado em pedra, chorado em sal. Mas hoje não venho para chorar. Limpo a poeira no teu nome, e ajoelho-me perante a tua efeméride. A elegia já te era merecida e é irónico pensar que de nada servem as palavras se não as dissermos, se não verbalizarmos o que nos emana de cá de dentro, mas já estou sem forças para as articular. Especialmente para uma plateia de sombras. Prostrado, sigo a liturgia; o exumar de tantos momentos, de tantos destroços de tempo. O reavivar dessa pequena centelha que existiu para além de ti. Para além de nós. Mas desta vez nada renasce da pira fúnebre que compôs o cortejo.

Levanto-me e sacudo a terra, largo um ultimo olhar á relutância. Volto-me para alameda cipreste e deixo o sacrossanto para os fieis, as quimeras para quem sonha, e o pecado para quem o expia. Parece-me que ainda espero a negação desta realidade, uma forma de poder sair do compasso e quebrar a engrenagem que criou este segundo. Serve-me a ilusão por agora, porque não é mais do que isso. Agora apercebo-me ter vindo ao sitio certo, porque hoje vim dizer o adeus que já devia de ter dito hà muito tempo."