sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

banal

""já não sei fazer isto" disse-te enquanto acendia as velas da mesa de jantar. Pelo canto do olho pude observar a tua expressão de assentimento forçado. Estavas a acabar de por os pratos na mesa e senti que não podias deixar uma pergunta retórica por fazer. Dão-se aqueles segundos tensos e maquinais, as fracções pesadas da espera em silêncio. Pude ver-te a morder os lábios como se tivesses um segredo por revelar, uma verdade escondida à espreita de sair cá para fora. Soube logo que não irias deixá-la passar. Na realidade, nunca deixas passar nada por ti. "já não sabes fazer o quê?" perguntaste com dolência; como quem larga alguém da mão. Curioso o gesto de colocares o ultimo prato na mesa como se servisses da linguagem do teu corpo como resposta inconsicente. Tive tempo para pensar no que te responder. Mas já estava na ponta da língua. Logo eu o homem das frases feitas. "já não sei fingir que está tudo bem, já não sei abrir as minhas e as tuas portas, já não sei onde ir buscar forças, sei lá...". Mas sabia bem; aliás; sempre soube quando algo esmorece. Mas por dentro só me criticava por nunca saber estar calado."

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

fragrância

"lembrei-me de ti hoje de manhã, senti o mesmo perfume em alguém que passou por mim e não pude deixar de olhar para trás. só mesmo para ver se eras tu. mas não eras. e a cada passo na calçada, choveram imagens atrás de lembranças. o liceu, os desvarios de putos, as tardes na praia, o acampar, os dias e noites nos jardins do bairro, as nossas piadas que ninguém entendia (nem nós às vezes), os sonhos comuns e os medos de infância. eu ainda percorro as mesmas ruas anos depois. tudo diferente e tudo igual. acabo sempre por pensar "já não há putos como nós fomos" e pergunto-me: o que é que nos aconteceu? onde estás tu hoje? talvez escondida na fragrância de um perfume que nunca mais se abriu, perdido na tua mesa de cabeceira."

sábado, 17 de setembro de 2011

já me tinhas dito...

"cuidado com o que pedes, podes ter o azar de acontecer" foi o que a minha mãe me disse há uma data de anos atrás. na altura ri-me e contrapus dizendo de uma forma despreocupada "sabes lá tu! sabes lá alguma coisa..." mas ela sabia. muito mais do que eu. como daquela vez que ela me disse que iria dizer o mesmo aos meus filhos e até os ia castigar da mesma maneira. dessa vez até podia ter acabado o mundo com tanto barafustar e bufar da minha parte. mas ela sabia. e não há outra forma de comprovar senão quando as coisas nos batem directamente no focinho e damos o braço a torçer. mesmo assim pergunto-me porque é que não me avisaste de tantas mais coisas antes da minha vida de adulto? das provações e dos tédios, das responsabilidades e desventuras. de certeza que hoje estaria mais previdente e esclarecido. mas assim não sucedeu. e eu sei, eu sei que é suposto aprender assim, para saber caminhar tive de caír. para saber amar tive que sofrer. e vou saltando de chavão em chavão. mas a verdade é esta: não é necessário ir tão longe para dizer que ela tinha razão. raios partam, eles têm sempre razão."

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

daemon

"transpomo-nos podemos dizê-lo? retiramos a nossa pele em escamas nas noites que passámos em serpente. reptilicos abrimos persistentemente os braços que não temos. talvez num milhão de anos. assim sobram as leis dos mais fortes. assim nascemos de evolução. e custa-nos o olhar veloz de desconfiança. se falamos pela sua cor é o mesmo que cuspir nos nossos corpos. e vivem-se. e respiram-se. não como velados, se é que o queremos como santos. esquecemos vidas passadas em legiões e nem nos podemos valer das nossas vidas. nenhuma delas."


domingo, 28 de agosto de 2011

Luz

"O sol teima em descobrir uma forma de nascer outra vez, sinto a frescura do dia entrar lentamente pela janela na divisão onde estou e começo a sentir-me menos tenso, menos agastado. Curiosamente os ciclos que tanto apregoo tem uma forma única de se revelar. O ecrã enche-se de letras e palavras enquanto tento desocupar alguns atalhos e recantos da minha mente. Assim como o sol entra em minha casa sinto que algo deve ser colocado à luz do dia, à luz da razão, à luz da paz de espírito. Revolvem-se notas antigas, centelhas de imagens e momentos, sons familiares que ainda reverberam na pedra. Podia falar-se da memória de elefante mas as cicatrizes da paixão falam mais alto que fotos perdidas em baús. Revisto os mesmos espaços sozinho e encontro as mesmas canções que escutava. Sente-se o medo impregnado nos mausoléus onde fechei esses pedaços de mim. Afasto os demónios e fantasmas que nunca existiram verdadeiramente, espectros e reflexos criados pela defesa do sacro. Essa câmara onde não me atrevo a entrar. Percebo de onde vem esta calma, é o som das vozes que me acompanham. Talvez seja hora de quebrar esta barreira que ainda não entendo. Ainda não sei se é aí onde estou, mas vejo que há luz. Finalmente."

sábado, 6 de agosto de 2011

monocórdico

"mais, mais e mais. limpo o suor da testa e arregaço as mangas. já sei que o dia vai ser puxado e sinto a vontade de cuspir nas mãos para pegar na enxada. não é esse o meu destino embora já o tenha visto na primeira pessoa. "já não sou assim tão novo para pensar em batatas e trabalhos forçados" pensei no meio da azáfama. é tão difícil acordar. o correio acabado de chegar, a barba por fazer e a loiça para lavar. Contas e contas, meios minutos nas vozes da manhã em surdina na televisão, a água quente que me chama em tons de vapor. inteiro-me das realidades comuns enevoadas. "põe os óculos bom homem!" e sinto que vejo melhor sem ver. "a limpidez da vista não coaduna com a limpidez de espírito". revisito as meias e as calças, acerto o olhar com o gel no cabelo. fecho e deixo o cubículo. "deve ser a milionésima vez que desço as minhas escadas, espera, já ontem me disse o mesmo, espera..." e sinto-me indeciso em descer e viver. e já vou tão rápido rua acima que nem vejo quem me acompanha, buzinam e ultrapassam. fujo aos engarrafamentos e desço a minha colina por ruas velhas. segue-se a marcha forçada e não deixo de pensar "se deus me quer, o homem sonha, a obra nasce? mas que deus é este que me deixa sempre a querer a meio dos sonhos. não admira que sejam nados-mortos. e não o censuro, censuro-me a mim por viver as mesmas obras, dia após dia."

sábado, 16 de julho de 2011

semânticas

"Coibi-mo-nos de perguntar as coisas que realmente queremos com medo que de ouvir as respostas que sabemos. Mais especificamente as que nos dizem respeito. E acho que as palavras passam a ser realidade quando as proferimos, ganham força e sentido, criam asas e ultrapassam as ideias. Talvez seja esse o nosso mal. Dar tanta força ao que não queremos ouvir em palavras faladas. Ficam os resquícios semânticos de frases recicladas, pedacinhos perdidos nas entrelinhas.Um duplo significado escondido, um sinónimo por esclarecer. Peca-se na sua transmissão como quem conta um conto aumenta um ponto, amplifica-se o sentimento e desfaz-se o silêncio dos olhares. Mesmo que não se queira, repete-se e repete-se e repetem-se, até nos conseguirmos despir dos sons que compõem as quebras do vocábulo e dizer o que queremos sem medos. Não obstante o que se possa ferir pela voz."

quarta-feira, 6 de julho de 2011

passivo-agressivo

"dois pólos de racional, uma pitada de sarcasmo, uma voz furiosa. um contencioso escondido, um trejeito animal,uma dúvida aparente. oscilam os pêndulos da voz, rege-se um salomónico duvidar da balança. voz pregada em vidas por amar, pela raiva das cores que nunca viu. narcoléptico sonho real, esculpido a sussurro e trovão. agitam-se violentamente os pratos de uma balança viciada. fecha-se os olhos à compaixão e desferem-se golpes precisos e cirúrgicos. alimenta-se a ironia e guarda-se tudo numa inviolável caixa de vidro. contemplam-se os ventos no olho do furacão e amaldiçoa-se a sua devastação. negam-se bálsamos e consolos para que se possa aprender a suportar e transformar a dor. compõe-se peças de um yin-yang pois tão certo é fazer um de duas metades."

segunda-feira, 30 de maio de 2011

enxame

"Posso ser quem não esperam que seja? Posso viver como não esperam que viva? Sigo defraudando os vossos desígnios. Nem pelo destino como me advogam, nem por ninguém que não o mereça. Quem o merece afinal, se o imposto me soa como redutor e mesquinho. Se o aprisionar do que sou, não me parece nada altruísta. Pois bem, fuja-se ao normativo, fuja-se à regra porque se as palavras valem o que valem num mundo cheio de verbos, quem adjectiva é rei. Mas a colmeia agita-se, o frenético enxame irado irrompe em busca do próximo linchamento. Se bem que prenuncie a minha sorte, farei frente ao vosso escárnio e arrecado a coragem do ultimo dos moicanos. Fiel e incorruptivel. A mim digo-o eu. Se o que perco é o mundo, no final ganho a minha integridade. Mas sei bem que quando se der a cisão dirão apenas uns para os outros: E é apenas mais um. Na miríade, era um que ainda não tinha nome."

segunda-feira, 28 de março de 2011

ser melhor

"Penso muitas vezes em como te poderei fazer feliz. Divido-me em três. Um para de manhã, um para a tarde e outro para noite. Um que te acorda e que sorri contigo para mais um nascer do dia. Um que te aguarda no pior dos momentos e que te ouve na pior das quezílias do trabalho. Um que te conta histórias para adormecer e que te envolve nos seus braços de sono. Penso nas formas de me reinventar e de procurar o meu melhor para que tenhas orgulho em mim. Penso em como te poderei fazer rir, mordaz ou sarcástico, o teu sorriso será sempre um lugar comum. Penso em como me contento com "um gosto de ti" e que leva um beijo teu atrás. Penso em como sou feliz por te deixar uns pequenos recados que validam aquelas pequenas cumplicidades do dia-à-dia. Por isso se te faço feliz, diz-mo, embora eu já o saiba."

domingo, 20 de março de 2011

crime e castigo

"Vi a minha cara no espelho quebrado. Tinha os nós dos dedos ensanguentados e o olhar ferido. Os cortes não eram muito profundos e não mereciam assim tanto cuidado. Ao limpar o sangue do lavatório observei o inchaço no rosto. Ainda incrédulo levei a mão ao peito e apercebi-me das nódoas negras e dos cortes que estavam espalhados pelo corpo. Levei os dedos à boca para encontrar os lábios inchados e rasgados. Macerado e atónito olhei-me novamente ao espelho e despi a camisola. Decidi tomar banho para ver se acordava e me recompunha. O som da àgua a escorrer ribombava na minha cabeça ao ponto de me contorcer com dores. Despi-me totalmente e pude ver a extensão das mazelas. Antes de entrar no chuveiro, fui à sala. Numa das paredes brancas, uma frase escrita a sangue "cospe o corpo, renego ao salvado." Por cima da mesa, vários copos partidos, papeis, a toalha cheia de manchas de sangue e vinho, dois pratos e talheres com restos de comida (do jantar de ontem supus) e várias garrafas. Uma delas, a de whisky, ainda tinha um bom terço restante. Sem hesitar, levei a garrafa à boca e dei um trago gigantesco. O acre dos cascos de carvalho contrastou com o pungente do alcool. Salvava-se o palato, "Afinal este é de malte!" exclamei. Tentava matar a ressaca com o veneno que a causou ou pelo menos minimizar a tormenta. Entrei no banho e passei lá uma boa meia hora. Doía-me todo o corpo e tive de me lavar muito cuidadosamente. Soaram alguns gemidos de dor enquanto passava a esponja no peito. Tinha a esperança de ganhar coragem para limpar a casa e descortinar a noite anterior. Quando me estava a secar na sala, pude observar a televisão acesa num canal de música qualquer, o sofá rasgado com um dos pés partidos, as cadeiras caídas e os livros espalhados pelo chão. "Qualquer que tivesse sido o furacão que por aqui passou, foi mesmo destructivo." disse em voz alta como se me estivesse a convencer que não tinha sido eu a fazê-lo. Dei um olho à porta do quarto. Algumas gotas de sangue no chão prenunciavam o pior. Arrepiei-me totalmente ao descobrir um fragmento da noite anterior que preludia o desastre. Senti o ritmo cardíaco a aumentar enquanto respirava fundo tentando acalmar-me. Ousei abrir a porta e vi um vulto na minha cama. Via-se um jacto cada vez mais profuso de sangue no chão. As portadas da janela estava quase fechadas mas deixavam passar luz suficiente para que pudesse ver nitidamente. Alguém se tinha arrastado até à cama em condições lastimáveis. O quarto estava completamente desarrumado e via-se um candeeiro partido no chão, juntamente com um monte de roupa. O quarto cheirava horrivelmente e junto à cabeceira pude distinguir uma mancha de vomitado. A ansiedade quase me dominava ao ponto de desfalecer mas ganhei coragem e entrei. Estava resignado a ver quem dormia na minha cama, mas o receio fez-me dar uns passos muito pequenos e cautelosos até aos pés da cama. Por cima do corpo estavam uns lençois manchados de sangue assim como a fronha da almofada. Ganhei coragem e aproximei-me. Se alguém dormia não fazia barulho e temi o pior. Imaginei logo mil cenários que poderiam explicar o que se tinha passado, de acordo com os indícios espalhados pela casa. Ganhei coragem, esfreguei os olhos para combater a vertigem do medo e levantei o lençol.
O terror instalou-se em mim quando me apercebi do corpo que lá dormia. Ensanguentado e com a cara inchada pude reconhecer-me deitado na cama. Senti que o meu coração explodia e que não conseguia raciocinar e explicar-me. Dei um passo para trás e tudo ficou escuro.
Acordei em sobressalto completamente suado na cama. Com o folego a escapar-me e uma sensação de amargura na boca. Olhei à minha volta. No relógio digital marcavam as 04:33 da manhã. Levantei-me rápidamente e dirigi-me à sala. Nada se assemelhava ao desastre que tinha ocupado aquele espaço. Fui à casa de banho lavar o rosto e recompôr-me. Na mesa da sala estava uma pequena nota escrevinhada a lápis onde se lia "Ainda estou para saber quem é que sou e como é que eu me chamo nos meus sonhos.""

terça-feira, 15 de março de 2011

mar de vozes

"Cruzo teu olhar com um sorriso e olho lá para fora. Para fora desta redoma que nos envolve, que nos protege da solidão. Perguntas-me que horas são. "É tarde." respondi, sem te deixar perceber que é tarde demais para estar acordado. Mas isso não te detém, aliás não nos detém. Observamos os diálogos enamorados de si próprios e deixamos a semântica andar à solta. Corremos meio mundo num piscar de olhos, revisitamos anos de histórias e memórias. Deliramos num mundo infantil e amaldiçoamos as vicissitudes dos adultos. As gargalhadas e os suspiros preenchem a viagem mirabolante dos nossos diálogos. Ás vezes sinto a necessidade de vir à superfície respirar e encher os pulmões para voltar à apneia do nosso mundo. Lá fora os segundos correm desenfreados e nós cá dentro vemos um grão de areia transformar-se em pérola."

sexta-feira, 4 de março de 2011

engrenar

"Volto à carga. Volto ao moroso e desinteressante. Voltam as subserviências e adulações, aos "quid pro quos" e falsos sorrisos. Volto aos dias longos e desatinados, acções mecanizadas e gestos dissecados. Aos discursos habituais e imagens cuidadas. Volto à expansão da memória e dos processos cognitivos. Movem-se estas rodas dentadas, as complexas e pesadas engrenagens que dão vida ao outro que sou eu. Volto a dar mais a quem não o quer saber, volto aos esforços imerecidos. Contrasta o sacrifício com a recompensa, sinto que perco mais tempo e ganho mais impaciência. Volto ao adulto que me compõe como menos interessante. E faço o que gosto. Fará se não o fizesse."

terça-feira, 1 de março de 2011

Perfil

"Adoro ver-te de perfil" disse-te quando acordei. A luz da manhã penetrava lentamente no quarto enquanto as minhas pupilas tentavam adaptar-se ao teu rosto. Ainda não tinhas acordado plenamente mas sorriste com os olhos fechados e perguntaste: "Porquê de perfil?" "É do teu nariz, perfeito e equilibrado, dá simetria à tua face. Confere-te altivez." Chamaste-me para ti, e pediste-me beijos. Pensei como já tentei ler as linhas do teu rosto, como já tentei decifrar o teu olhar, como perscrutei as curvas do teu corpo. Sempre novo, sempre inexplorado, sempre algo a redescobrir. Não te quis deixar levantar, pois sabia quando o fizesses, entrarias no teu mundo. No mundo das letras e compromissos, no mundo das responsabilidades e dos colóquios. E eu do outro lado da lua, em órbita, na face escondida do satélite. Sempre a medo de me perder em ti. Outra vez."

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Captain's log - Day five

“Acabou. E estou de volta. Aliás ainda estou a caminho e já tenho saudades. Especialmente das pessoas e não dos lugares. É o voltar para a cidade e os seus meandros. O lidar com a frieza do inverno em cada um. Que dualidade esta de amar a cidade e detestar as pessoas. Mas como tu me disseste e no qual gosto de acreditar: “Cidade, a fábrica dos sonhos.” Segue o asfalto de retorno e passam as paisagens por mim rápidamente. Com elas fica uma semana em que me dediquei ao mais básico de mim. Ao esforço físico, à entrega ao primordial. Ao instinto de superar-se fisicamente. Fica também a camaradagem e o fraterno. “Para o ano há mais” pensei enquanto soltava uma gargalhada. Vejo os paineis informativos para chegar a Lisboa, a cada dez minutos mais próximo, mais próximo, mais próximo. Sinto uma ansiedade crescente, por chegar à rotina, por ter de viver mais depressa e mais intensamente. Mas essencialmente aperta-me aquele nó no estômago porque a cada quilometro que passa estou mais perto de ti”.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Captain’s log – Day four

“É o penúltimo e eu não gosto nada de penúltimos. Nem da semântica da coisa. Parece-me sempre como ultimar, forçar um final ou uma resolução. Se cada dia é um episódio esta semana parece uma saga. Com todos os seus detalhes e rigores. Ou a falta deles. E ao penúltimo parece-me que fica sempre algo para dizer. As cidades hoje encheram-se de pessoas. Velhos e novos, homens e mulheres, idades e credos. Uns para ver os seus heróis, outros para participar da festa, qualquer que ela fosse. Define-se assim o bom povo português que sai sempre à rua quando é para dançar e celebrar. Procura-se esquecer a tristeza consentida que nos acompanha.

De heróis viram-se alguns, uns mais destacados, outros mais despercebidos. Dos destacados gabo-lhes a perseverança, entre quedas e suor. Entre vitórias e sorrisos e o companheirismo de quem chega por ultimo. Dos despercebidos gabo-lhes o resto, as horas matinais, o sacrifício físico que se sujeitam, o pegar no que sobra do festival. O limpar e cuidar, o nutrir e ajudar. Essencialmente o adormecer a pensar se o poderemos fazer melhor amanhã.

E como esses passam despercebidos, ninguém vê o verdadeiro esforço que colocamos nas coisas, ninguém sente esse desgaste. O de trabalhar no limite das nossas forças enquanto o povo dança e festeja . O que sobra por último é o conforto de ver uma máquina em movimento.Ver a felicidade no rosto de alguns, o sentimento altruísta que existe em cada um e que de vez em quando damos graças por ele existir. O conforto de saber que fiz parte de algo que é mais do que eu. Ver-lhe o inicio e o fim. Dever cumprido. Mesmo assim faço-o por gosto. Especialmente por isso.”

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Captain’s log – Day three

“Acordei vindo do esforço. Miseras horas entregues a orfeu. Bem sei que merecias melhor devoção, mas o destino assim o obrigou. Ficou o intento perdido na cama. A monotonia do asfalto rende-se sempre ao mesmo, ainda mais sendo eu o conduzido. Hoje, em jeito mais pastoril, tive oportunidade de observar um mundo rural que já não via há muito tempo. Estive tempo demais emparedado na urbe a viver uma azáfama constante. O facto curioso é que adoro a cidade e tudo o que a envolve. Ao observar o que me rodeava lembrei-me do sonho que o meu pai tinha para mim. Seria engenheiro agrónomo. Talvez ele tivesse razão, talvez não, mas hoje compreendo o seu pedido. Ele era um homem do norte, da raia. Homem de tradições e mezinhas, dos maus olhados e do contrabando fronteiriço. Ele que sempre quis o melhor para mim, pensou que pudesse deixar mais do seu legado ao encaminhar-me para um futuro que lhe fosse familiar. Deve ser genético então, ou como se diz, mal de família. A verdade é que hoje estou a sul desse sonho, e de minha casa.E faz-me falta sonhar.Por isso no final do dia, decidi-me a acender um cigarro e contemplar o ermo na serra. Agora percebo o meu pai e disse para comigo “Só tenho pena de não ter a tua companhia quando o sol se abateu e fechou os vales no escuro.” ”

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Captain’s log – Day two

“Hoje foi tudo ao contrário, levantei-me mais tarde mas ainda às escuras. Obriguei-me a entrar no banho e baptizar mais um dia. Saudoso joão baptista, também a minha cabeça entregue na bandeja. Mas pelo cansaço. Cá fora esperavam-me os irmãos de batalha, compostos e trajados. E eu ainda em falta. O céu soava a mau augúrio mas nunca se vira costas ao devido. Para espanto geral, os regentes foram beneméritos e a chuva não se adiantou. O tempo que escasseava noutros idos agora corria lento, plácido e moroso. Quando se volveu à carga foi tudo muito rápido. Tão rápido que até nos espantámos. Para quem toma o atraso com garantido...

O sol apareceu não tímido como esperávamos, mas sim pleno e quente.Ousámos roubar a cronos para mais tarde recordar. Soa a chavão mas é válido. Quando o o dia se resolveu fiquei para trás. Ao contrário do habitual, ruminei o dia e amaldiçoei quem manda. Eu que esperava um dia comum não o tive. Como me ensinou a lei de murphy. Amanhã outro virá, mais ou menos por donde veio hoje.”