domingo, 20 de março de 2011

crime e castigo

"Vi a minha cara no espelho quebrado. Tinha os nós dos dedos ensanguentados e o olhar ferido. Os cortes não eram muito profundos e não mereciam assim tanto cuidado. Ao limpar o sangue do lavatório observei o inchaço no rosto. Ainda incrédulo levei a mão ao peito e apercebi-me das nódoas negras e dos cortes que estavam espalhados pelo corpo. Levei os dedos à boca para encontrar os lábios inchados e rasgados. Macerado e atónito olhei-me novamente ao espelho e despi a camisola. Decidi tomar banho para ver se acordava e me recompunha. O som da àgua a escorrer ribombava na minha cabeça ao ponto de me contorcer com dores. Despi-me totalmente e pude ver a extensão das mazelas. Antes de entrar no chuveiro, fui à sala. Numa das paredes brancas, uma frase escrita a sangue "cospe o corpo, renego ao salvado." Por cima da mesa, vários copos partidos, papeis, a toalha cheia de manchas de sangue e vinho, dois pratos e talheres com restos de comida (do jantar de ontem supus) e várias garrafas. Uma delas, a de whisky, ainda tinha um bom terço restante. Sem hesitar, levei a garrafa à boca e dei um trago gigantesco. O acre dos cascos de carvalho contrastou com o pungente do alcool. Salvava-se o palato, "Afinal este é de malte!" exclamei. Tentava matar a ressaca com o veneno que a causou ou pelo menos minimizar a tormenta. Entrei no banho e passei lá uma boa meia hora. Doía-me todo o corpo e tive de me lavar muito cuidadosamente. Soaram alguns gemidos de dor enquanto passava a esponja no peito. Tinha a esperança de ganhar coragem para limpar a casa e descortinar a noite anterior. Quando me estava a secar na sala, pude observar a televisão acesa num canal de música qualquer, o sofá rasgado com um dos pés partidos, as cadeiras caídas e os livros espalhados pelo chão. "Qualquer que tivesse sido o furacão que por aqui passou, foi mesmo destructivo." disse em voz alta como se me estivesse a convencer que não tinha sido eu a fazê-lo. Dei um olho à porta do quarto. Algumas gotas de sangue no chão prenunciavam o pior. Arrepiei-me totalmente ao descobrir um fragmento da noite anterior que preludia o desastre. Senti o ritmo cardíaco a aumentar enquanto respirava fundo tentando acalmar-me. Ousei abrir a porta e vi um vulto na minha cama. Via-se um jacto cada vez mais profuso de sangue no chão. As portadas da janela estava quase fechadas mas deixavam passar luz suficiente para que pudesse ver nitidamente. Alguém se tinha arrastado até à cama em condições lastimáveis. O quarto estava completamente desarrumado e via-se um candeeiro partido no chão, juntamente com um monte de roupa. O quarto cheirava horrivelmente e junto à cabeceira pude distinguir uma mancha de vomitado. A ansiedade quase me dominava ao ponto de desfalecer mas ganhei coragem e entrei. Estava resignado a ver quem dormia na minha cama, mas o receio fez-me dar uns passos muito pequenos e cautelosos até aos pés da cama. Por cima do corpo estavam uns lençois manchados de sangue assim como a fronha da almofada. Ganhei coragem e aproximei-me. Se alguém dormia não fazia barulho e temi o pior. Imaginei logo mil cenários que poderiam explicar o que se tinha passado, de acordo com os indícios espalhados pela casa. Ganhei coragem, esfreguei os olhos para combater a vertigem do medo e levantei o lençol.
O terror instalou-se em mim quando me apercebi do corpo que lá dormia. Ensanguentado e com a cara inchada pude reconhecer-me deitado na cama. Senti que o meu coração explodia e que não conseguia raciocinar e explicar-me. Dei um passo para trás e tudo ficou escuro.
Acordei em sobressalto completamente suado na cama. Com o folego a escapar-me e uma sensação de amargura na boca. Olhei à minha volta. No relógio digital marcavam as 04:33 da manhã. Levantei-me rápidamente e dirigi-me à sala. Nada se assemelhava ao desastre que tinha ocupado aquele espaço. Fui à casa de banho lavar o rosto e recompôr-me. Na mesa da sala estava uma pequena nota escrevinhada a lápis onde se lia "Ainda estou para saber quem é que sou e como é que eu me chamo nos meus sonhos.""

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