domingo, 31 de outubro de 2010

Terra de ninguém

"Esfreguei os braços para combater o frio. Para além da chuva que caía modestamente, o vento que se fazia sentir arrepiava-me completamente. Mas mantinham-me acordado e trazia-me à razão enquanto o meu corpo respondia involuntariamente ao chamamento das ruas. Passos incertos mas decididos em continuar e continuar e continuar... Movia o dínamo dentro de mim e esperava ir descarregando lentamente toda essa energia, esse motor que nunca desliga, um motriz frenesim composto de ideias e emoções, prestes a quebrar o obsidiano. Quando dei por mim estava naquela rua outra vez, na rua onde nos conhecemos, de onde partimos em busca de sinceras vénias e partilhas. Vi que esta solitária rua onde se cruzaram as vozes abafadas pela reticência de quem estende a mão, é uma fronteira entre o meu e o teu mundo. E eu transpunha essa terra de ninguém ignorando os cortes da gélida chuva de granizo, não fosse esta uma noite de finados."

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Pela avenida...

""Já tive a tua idade" pensei enquanto abria o chapéu de chuva e olhava a para os miúdos. A correria das crianças a chapinhar pela avenida em direcção à escola fez-me voltar atrás no tempo. Das longas manhãs chuvosas, do bulício dos carros no alcatrão molhado com o seu som característico. Das horas debitadas a escrever nos cadernos enquanto por momentos vislumbrava pela janela da sala de aulas os coloridos chapéus de chuva lá em baixo na rua. Das grandes chuvadas que faziam parar o discurso dos professores e do cheiro das folhas molhadas. Dos blusões molhados e das reprimendas maternais e matinais. Das luvas de lã e dos autocarros cheios de gente. Dos corredores da escola cheios de vida, ladrilho molhado e dos pátios cheios de folhas. Das contínuas a acalmarem o rebuliço constante da criançada e da som da chuva a bater nas vidraças da biblioteca da escola. "Já tive a vossa idade" pensei enquanto segui pelo mesmo caminho que percorri vez após vez, por onde decorei as paredes dos prédios e as pedras do passeio. Pelo mesmo caminho que me levou a casa dia após dia e hoje não sei quantos dias mais velho, só mudaram os rostos nas ruas."

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Alvorada de destroços

"Once more unto the breach, dear friends, once more;
Or close the wall up with our English dead.
In peace there's nothing so becomes a man"

Henry V - Shakespeare


"Devo desnudar-me, largar esta armadura e dar o peito ás balas. Uma vez mais combater na falha e pela falha. No local comum das minhas batalhas. Mas em nada é voraz, em nada combativo mas resignado. E se na batalha serei ferido, um amanhã vivo. Pela força da minha dor. Porque se não morri ainda me tenho para um novo embate. Segue-se a alvorada de destroços humanos, num conjunto de lacerados corpos desencontrados. Cuspo o ferro da minha boca, rubro caudal profuso, pulsar de vida desperdiçada. Desce o sol e prossigo em catarse porque dos mortos não reza a história."