quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Vigília

"Ouço-te adormecer e estou ao teu lado. Hoje vivo um espaço diferente, o mesmo calor mas em lados opostos do sofá. A luz ténue desfila em pequenos raios que iluminam os cantos da sala. Hoje sinto-me útil e isso faz-me feliz. Nem que seja durante um pouquinho. Um pouqinho que enche este pequenito espaço que resta. Levanto-me e vejo a ninhada. Vejo os teus a crescer e sorrio como uma criança. Esta é como se fosse a primeira vez que os vejo tão pequenos. Como eu fui e como sempre quis ver. Ouço latir o pequeno bando de irmãos e penso que embora nunca o tenha estado, hoje já não estou só. Ajudo o mais pequenito a mamar e não deixo de pensar que sou filho único. Que não tive de me esforçar entre uma fraterna família. Às vezes sente-se sempre mais só aquele que sempre foi mais privilegiado. Volto para o meu lugar, e sento-me para escrever. Para te escrever.
E como sei que hoje dormes fico descansado estando acordado."

sábado, 20 de novembro de 2010

Marasmo

"Ontem tinha acabado de chegar a casa e sentei-me no sofá. Liguei a televisão à espera de adormecer, mas o dia vingava lá fora e eu contava os raios de sol que entravam pelos estores da minha janela. Fechei as cortinas e esperei que os meus olhos se habituassem ao escuro. "Sol de pouca dura. Sucedem-se os dias atrás uns dos outros, e conquanto e não sejam iguais, diria idênticos." - pensei, e por muito que quisesse estar noutro lado, não o queria. Esperei que o cansaço me levasse a melhor, e arrastei-me lentamente para a cama.
Hoje cheguei a casa e o dia sucedia-se, e contei os raios de sol na janela, Desliguei a televisão, liguei o rádio e esperei. Esperei por uma canção melhor. Uma que não me soasse a ruído."

sábado, 6 de novembro de 2010

Baluarte

"Viam-se as fogueiras pelos campos, pequenos focos de luz, confirmação de vida dispersa no breu da noite. E virou-se para oeste e correu o resto dos pontos cardeais. A vigia era constante e o medo maior. A omnipresença do seu baluarte podia ser observada a léguas, mas isso não serenava o seu ocupante. Sempre à espera de movimento, de validar o seu receio de inimigos, o seu temor escondido. Passaram-se estações atrás de estações, e do topo da sua torre viu apagar-se esses pequenos sinais de vida. Ainda não sabia se aguardava a vinda de ajuda ou de outras vagas hostis. Estas eram imagens perdidas de quem olha para um horizonte infecundo. Outros dias sucederam, e freneticamente corria de ameia em ameia na esperança de ver algo que justificasse a sua presença. Acelerava a sua velhice dia após dia no seu retiro, muralhado a solidão.
"E se não houver nada a esperar?" pensou. Tanto ecoou esta ideia que um dia decidiu sair do seu pequeno forte e abrir as portas de par a par. Sentiu-se aterrorizado pelo peso das estepes que o rodeavam, do silêncio dos terrenos, dos trilhos de quem não sabe se há-de ir ou vir. Mas não voltaria para uma casa vazia, não voltaria para a fortaleza que o defendia do nada."

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Alegoria

"Não queria ter acordado hoje e visto a luz lá fora. Não me queria ter levantado e visto a morte do sonho. Do mundo das ideias para o mundo do real. Triste alegoria da caverna. Pantomina de sombras e fumos. É fácil apaixonarmo-nos por uma ideia, por um ideal. Mas uma utopia só o pode ser se for vivida e consequentemente provada como inatingível. Este modelo adequa-se mais aos indivíduos do que ao colectivo. Adequa-se mais a mim que vivo das ideias e dos desejos, porque a realidade fica sempre aquém do imaginado. E saímos sempre a perder do embate com o real, desgaste após desgaste perde-se a vontade e o rosto, até que um dia vemos que já não nos sobra nada e deixamos de reconhecer a nossa sombra."