segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

inventário

"Uma cabeça, dois olhos, duas orelhas, um nariz, uma boca. Confere. Dois braços, duas pernas, dois pés e duas mãos. Confere. Em cada pé e cada mão cinco dedos. Confere. Dois pulmões, um figado, um estômago, um intestino de cada qualidade. Confere. Um pâncreas, dois rins, uma bexiga. Confere. Um coração. Não confere. Não confere?! Mesmo assim ainda me sinto anatomicamente correcto. Se calhar já não preciso disso. Creio eu. Agora sim, tudo conferido. Só me falta arrumar as ideias. Mas quem é que faz o inventário disso? E não são só as ideias completas, mas também aqueles raciocínios que ficam a meio ou aqueles fragmentos e pedacinhos que ainda não compõem uma ideia mas que espalham a semente. Tarefa hercúlea de arrumar e catalogar uma casa desarrumada. Passo a expressão à casa pois serve-me melhor o armazém. Para ser sincero nem me estava nada a apetecer fazer arrumações. Da ultima vez que o fiz foi uma poeirada que quase me perdi em tamanho nevoeiro. Fora ter de arredar caixas e caixotes, telas e papelotes, coisas perdidas de criança e projectos de homem crescido. O que tem de ser tem muita força, já me convenci. Vamos lá a essas catacumbas. Epá, espera aí. Um cerebro. Confere."

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

insustentável

"Pousei os talheres e tomei atenção ao televisor. Estava justamente a acabar a refeição quando me apercebi das imagens que me bombardeavam as retinas. Apressei-me a mudar de canal para ser bombardeado outra vez. Incontáveis actos de violência desfilaram sem apelo nem agravo. Senti um fogo lento nascer. Por momentos deixei de ser impassível e desliguei a televisão. Mas a violência que vi não falava de corpos mutilados. Falava de mães em pranto e de crianças sem eira nem beira, falava de pobreza e de loucura, falava do insucesso e do desvario, falava da dor de existir sem saber porquê. Falava de histórias do homem comum, e de como nos alimentam o ego de dúvidas e recalcamentos. E enquanto jantamos ou fazemos o que quer que seja está lá aquele ruído de fundo, por intermédio daquela caixinha de surpresas que nos dá o mundo a ver sem ter de o conhecer. Mas não é só aí, é nas ruas, nos prédios,nos cartazes que nos iludem, na boca das pessoas que nos confundem. Todos querem um pedaço de felicidade mas só falamos num choro entrecortado. E eu estou tão farto de não ter mensagens de esperança para dar."

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Peregrino

"O vento embalou até ao chão a ultima folha arrancada da árvore. A hora do dia já não interessava, já era tarde demais para telefonar para quem quer que fosse. Decidi-me ir para casa quando a rua já se tinha tornado insuportável. Mãos enregeladas e lábios cortados pelo frio. O bairro estava silencioso e escuro, a luz que faltava nas ruas era compensada pela lua cheia. O som dos meus passos povoava a rua vazia. Cafés e lojas fechadas, assim como as portadas das janelas nas casas em redor. Por cada prédio que passo imagino como será por dentro. Imagino as pessoas a dormir ou a ver televisão. Àquela hora decerto que todos dormem. Também eu devia. Mas insisto em ser animal noctívago. O que esperava mesmo era ver se encontrava alguém na rua. Um sinal de que não estavam todos a dormir, que alguém estava acordado nesta cidade fantasma."