segunda-feira, 28 de março de 2011

ser melhor

"Penso muitas vezes em como te poderei fazer feliz. Divido-me em três. Um para de manhã, um para a tarde e outro para noite. Um que te acorda e que sorri contigo para mais um nascer do dia. Um que te aguarda no pior dos momentos e que te ouve na pior das quezílias do trabalho. Um que te conta histórias para adormecer e que te envolve nos seus braços de sono. Penso nas formas de me reinventar e de procurar o meu melhor para que tenhas orgulho em mim. Penso em como te poderei fazer rir, mordaz ou sarcástico, o teu sorriso será sempre um lugar comum. Penso em como me contento com "um gosto de ti" e que leva um beijo teu atrás. Penso em como sou feliz por te deixar uns pequenos recados que validam aquelas pequenas cumplicidades do dia-à-dia. Por isso se te faço feliz, diz-mo, embora eu já o saiba."

domingo, 20 de março de 2011

crime e castigo

"Vi a minha cara no espelho quebrado. Tinha os nós dos dedos ensanguentados e o olhar ferido. Os cortes não eram muito profundos e não mereciam assim tanto cuidado. Ao limpar o sangue do lavatório observei o inchaço no rosto. Ainda incrédulo levei a mão ao peito e apercebi-me das nódoas negras e dos cortes que estavam espalhados pelo corpo. Levei os dedos à boca para encontrar os lábios inchados e rasgados. Macerado e atónito olhei-me novamente ao espelho e despi a camisola. Decidi tomar banho para ver se acordava e me recompunha. O som da àgua a escorrer ribombava na minha cabeça ao ponto de me contorcer com dores. Despi-me totalmente e pude ver a extensão das mazelas. Antes de entrar no chuveiro, fui à sala. Numa das paredes brancas, uma frase escrita a sangue "cospe o corpo, renego ao salvado." Por cima da mesa, vários copos partidos, papeis, a toalha cheia de manchas de sangue e vinho, dois pratos e talheres com restos de comida (do jantar de ontem supus) e várias garrafas. Uma delas, a de whisky, ainda tinha um bom terço restante. Sem hesitar, levei a garrafa à boca e dei um trago gigantesco. O acre dos cascos de carvalho contrastou com o pungente do alcool. Salvava-se o palato, "Afinal este é de malte!" exclamei. Tentava matar a ressaca com o veneno que a causou ou pelo menos minimizar a tormenta. Entrei no banho e passei lá uma boa meia hora. Doía-me todo o corpo e tive de me lavar muito cuidadosamente. Soaram alguns gemidos de dor enquanto passava a esponja no peito. Tinha a esperança de ganhar coragem para limpar a casa e descortinar a noite anterior. Quando me estava a secar na sala, pude observar a televisão acesa num canal de música qualquer, o sofá rasgado com um dos pés partidos, as cadeiras caídas e os livros espalhados pelo chão. "Qualquer que tivesse sido o furacão que por aqui passou, foi mesmo destructivo." disse em voz alta como se me estivesse a convencer que não tinha sido eu a fazê-lo. Dei um olho à porta do quarto. Algumas gotas de sangue no chão prenunciavam o pior. Arrepiei-me totalmente ao descobrir um fragmento da noite anterior que preludia o desastre. Senti o ritmo cardíaco a aumentar enquanto respirava fundo tentando acalmar-me. Ousei abrir a porta e vi um vulto na minha cama. Via-se um jacto cada vez mais profuso de sangue no chão. As portadas da janela estava quase fechadas mas deixavam passar luz suficiente para que pudesse ver nitidamente. Alguém se tinha arrastado até à cama em condições lastimáveis. O quarto estava completamente desarrumado e via-se um candeeiro partido no chão, juntamente com um monte de roupa. O quarto cheirava horrivelmente e junto à cabeceira pude distinguir uma mancha de vomitado. A ansiedade quase me dominava ao ponto de desfalecer mas ganhei coragem e entrei. Estava resignado a ver quem dormia na minha cama, mas o receio fez-me dar uns passos muito pequenos e cautelosos até aos pés da cama. Por cima do corpo estavam uns lençois manchados de sangue assim como a fronha da almofada. Ganhei coragem e aproximei-me. Se alguém dormia não fazia barulho e temi o pior. Imaginei logo mil cenários que poderiam explicar o que se tinha passado, de acordo com os indícios espalhados pela casa. Ganhei coragem, esfreguei os olhos para combater a vertigem do medo e levantei o lençol.
O terror instalou-se em mim quando me apercebi do corpo que lá dormia. Ensanguentado e com a cara inchada pude reconhecer-me deitado na cama. Senti que o meu coração explodia e que não conseguia raciocinar e explicar-me. Dei um passo para trás e tudo ficou escuro.
Acordei em sobressalto completamente suado na cama. Com o folego a escapar-me e uma sensação de amargura na boca. Olhei à minha volta. No relógio digital marcavam as 04:33 da manhã. Levantei-me rápidamente e dirigi-me à sala. Nada se assemelhava ao desastre que tinha ocupado aquele espaço. Fui à casa de banho lavar o rosto e recompôr-me. Na mesa da sala estava uma pequena nota escrevinhada a lápis onde se lia "Ainda estou para saber quem é que sou e como é que eu me chamo nos meus sonhos.""

terça-feira, 15 de março de 2011

mar de vozes

"Cruzo teu olhar com um sorriso e olho lá para fora. Para fora desta redoma que nos envolve, que nos protege da solidão. Perguntas-me que horas são. "É tarde." respondi, sem te deixar perceber que é tarde demais para estar acordado. Mas isso não te detém, aliás não nos detém. Observamos os diálogos enamorados de si próprios e deixamos a semântica andar à solta. Corremos meio mundo num piscar de olhos, revisitamos anos de histórias e memórias. Deliramos num mundo infantil e amaldiçoamos as vicissitudes dos adultos. As gargalhadas e os suspiros preenchem a viagem mirabolante dos nossos diálogos. Ás vezes sinto a necessidade de vir à superfície respirar e encher os pulmões para voltar à apneia do nosso mundo. Lá fora os segundos correm desenfreados e nós cá dentro vemos um grão de areia transformar-se em pérola."

sexta-feira, 4 de março de 2011

engrenar

"Volto à carga. Volto ao moroso e desinteressante. Voltam as subserviências e adulações, aos "quid pro quos" e falsos sorrisos. Volto aos dias longos e desatinados, acções mecanizadas e gestos dissecados. Aos discursos habituais e imagens cuidadas. Volto à expansão da memória e dos processos cognitivos. Movem-se estas rodas dentadas, as complexas e pesadas engrenagens que dão vida ao outro que sou eu. Volto a dar mais a quem não o quer saber, volto aos esforços imerecidos. Contrasta o sacrifício com a recompensa, sinto que perco mais tempo e ganho mais impaciência. Volto ao adulto que me compõe como menos interessante. E faço o que gosto. Fará se não o fizesse."

terça-feira, 1 de março de 2011

Perfil

"Adoro ver-te de perfil" disse-te quando acordei. A luz da manhã penetrava lentamente no quarto enquanto as minhas pupilas tentavam adaptar-se ao teu rosto. Ainda não tinhas acordado plenamente mas sorriste com os olhos fechados e perguntaste: "Porquê de perfil?" "É do teu nariz, perfeito e equilibrado, dá simetria à tua face. Confere-te altivez." Chamaste-me para ti, e pediste-me beijos. Pensei como já tentei ler as linhas do teu rosto, como já tentei decifrar o teu olhar, como perscrutei as curvas do teu corpo. Sempre novo, sempre inexplorado, sempre algo a redescobrir. Não te quis deixar levantar, pois sabia quando o fizesses, entrarias no teu mundo. No mundo das letras e compromissos, no mundo das responsabilidades e dos colóquios. E eu do outro lado da lua, em órbita, na face escondida do satélite. Sempre a medo de me perder em ti. Outra vez."