domingo, 26 de dezembro de 2010

sem sentido?

"A sala tinha o cheiro de tabaco em todo o lado e eu deambulava pela folha em branco. Já me resignei à companhia do cigarro. Ainda não sei o que me trouxe aqui, se a solidão, se a simples saudade de revisitar este estado de poder, na beira da criação ou pelo desalento do nada, do desejo incompleto. Mas cansa-me, ter de colocar estes pequenos pedaços de ideias num plano onde ainda não existem. Tirar mais um pouco de mim, do escasso que resta. E se me dizem que ainda tenho muito para dar, minimizo-o. Nobre modéstia que quase soa a hipocrisia. E que tenho eu para dizer? Entediar-vos com um conjunto de indecisões e questões. Maldita moléstia de não ter vontade própria. O problema é que com este vaguear volto sempre a uma folha vazia. Quem sabe se procuro sempre um começo. Quem sabe se procuro apenas um deserto onde não conheça o meu nome. Nem o meu nem de ninguém."

sábado, 18 de dezembro de 2010

Estóico

"Tive de me destruír para poder aprender. Tive de destruír algo para poder prosseguir. Deitei paredes abaixo, lápides e ideias. Violentei segredos e desenterrei corpos. Desfiz o sacro e rejeitei o santo. Duvidei dos meus olhos e das minhas palavras. Curei feridas e fechei cicatrizes, escamoteei o meu corpo mas tatuei alguns nomes na minha pele. Chorei pelas perdas e pelas vitórias. Esperei pelo conforto mas abominei as condescendências. Perdi-me nas ruas e encontrei solidão. Destilei venenos e filtrei a alma. Revolvi a terra e arei o campo da minha vida na esperança de poder colher mais do que tempestades. Fui arrancado a ferros deste parto dificil. "Mas ainda estou cá." repliquei enquanto cerrava os punhos. Que se abata esta panóplia de verbos no que me resta da vontade. Esta que é comum a todos os homens. Hábil percepção de transformar o que nos ultrapassa em algo atingivel."

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Miradouro

"Tinha estado a chover e o chão estava escorregadio. O cheiro a terra molhada e folhas amassadas na relva eram embaladas pela canção do vento e do ondular dos ramos nas árvores. As nuvens fugiam pelo horizonte deixando os negros céus iluminados por uma lua em fase crescente. Ao lado dela brilhava uma estrela solitária que insistia em se mostrar mesmo que ofuscada pelas luzes da cidade. Lá em baixo dormitavam as vielas de uma cidade suja. O pequeno movimento nas ruas não se ouvia do miradouro, mas trazia ao de cima a insónia de uma cidade que não dorme. "Eu faço parte dessa gente. Esses que nunca dormem verdadeiramente" pensei. Um casal passou por mim e sentou-se num banco mais ao fundo. Apertava agora o vento e ele, levantou o braço e colocou-o à volta dela. Sentiu-se acarinhada e sorriu aquele pequeno sorriso que as crianças fazem quando lhes fazemos a vontade. O frio parecia não aplacar os dois jovens que se aninhavam calmamente como se fossem passar as próximas horas sem se moverem. Mordi o lábio enquanto tentava fechar a porta da memória. Tentei distrair-me enquanto deixava caír os olhos sobre a rio e a ponte. E nas pequenas luzes do cacilheiro que brilhavam ténues no breu das águas. Apaguei o cigarro, apertei o casaco e fui para casa. Hoje iria finalmente dormir. Mas amanhã será dia de nevoeiro e eu tenho de me levantar para lhe fazer frente."